Rangel Alves da Costa*
Batizado e registrado como Aurelino
Cristosildo dos Santos, porém conhecido somente como Orelino Quixabeira. É
comum no sertão que os nomes sejam abreviados de modo que a pronúncia não dê
muito trabalho à língua. Já Quixabeira surgiu por causa da árvore vistosa que
noutros tempos dava sombreado e quixaba na malhada da moradia.
É homem simples, pacato, se mantendo
silencioso, reticente quanto à presença de estranhos. De estatura mediana,
magro, de um moreno abrasado de sol, rosto enrugado pela idade e pelas durezas
nas lides do dia a dia. Usando chapéu de couro já carcomido de tempo, calçando
roló em igual estado, veste uma calça remendada e uma camisa sem cor definida.
Diz que é roupa de trabalho e que não reparasse por estar vestido assim.
Não sabe dizer a idade, indicando apenas que
já passou dos setenta. Parece ter mais. Se de um lado há o reconhecimento da
força do homem sertanejo, que segundo Euclides é antes de tudo um forte, não se
pode negar o tronco forte que vai se alquebrando pela vida difícil que leva,
pelo sofrimento com as secas e pelas tantas e mais tantas dificuldades que tem
de vencer para continuar sobrevivendo. E há sempre uma família dentro da
casinha de barro e cipó.
Cheguei à presença do Senhor Orelino já ao
entardecer de um dia escaldante. E foi tarefa difícil vencer as veredas
espinhentas até chegar ao seu pedacinho de chão. Mesmo com as chuvaradas que de
vez em quando caem, ainda assim o sertanejo se mostra receoso e preocupado com
a estação. As chuvas são poucas, são apenas de molhar chão e esverdear o mato,
juntar alguma água nas fontes, mas não na quantidade suficiente para garantir
plantio.
Embrenhei-me na mata exatamente para saber do
Senhor Orelino a sua percepção sobre este momento duvidoso para o sertanejo.
Mas não fiz a escolha ao acaso. Depois de ouvir dois pequenos agricultores da
região, fui logo encaminhado até que, segundo os informantes, era a pessoa mais
capacitada para falar de sertão e de tudo o mais que quisesse saber acerca de
chuva, de sol, de seca, de esperança e sofrimento.
Ouvi ainda que o Senhor Orelino é tido e
reconhecido como verdadeiro profeta da região. Conhece quando o tempo vai ser
bom de plantio, sabe dizer se a seca vai ser duradoura ou passageira, conhece
quando vem trovoada, sabe até o tamanho da dor e do sofrimento que espera o
sertanejo. E tudo através da leitura dos sinais da natureza. Dizem que ouve a
voz do vento, conversa com as folhas, segreda com os troncos mortos e as folhas
vivas.
Um sertanejo com tais características não
pode deixar de ser conhecido. E foi assim que cheguei até sua cancela. Silêncio
total, porta e janela fechadas, o tronco da quixabeira servindo como tamborete
na malhada, um cachorro magro que nem deu importância ao visitante, e a
ventania zunindo nas folhagens distantes. Nenhuma plantação avistada nem bicho
de criação pastando pelo descampado ao redor. O chão tingido de verde, mas nada
de terra sulcada à espera de semente.
Continuei batendo palma e logo gritei o
conhecido “oi de casa” sertanejo. A porta lentamente começou a se abrir e então
pude divisar uma pessoa nas sombras do interior do casebre. “Oi de fora. E se é
de Deus seja bem-vindo”, foi a resposta. E logo uma feição tipicamente
nordestina atravessou a soleira. O Senhor Orelino se encaminhava em minha
direção como se não desejasse que, ao menos por enquanto, sua cancela não fosse
ultrapassada. Primeiro queria saber o que ali fazia tão estranho forasteiro.
Sou sertanejo também, logo me apresentei.
Pode entrar, foi a permissão recebida, e logo tive apontado na direção do
tronco da antiga quixabeira. Preferi ficar em pé, olhando no olho daquele homem
tão autêntico como a própria terra. Suas palavras eram poucas, quase nenhuma,
mas eu nem pensei em fazer perguntas e mais perguntas. O que eu tanto queria
saber já estava praticamente escrito naquele olhar, naquela feição, naquele
jeito de ser. Assim ocorre quando as palavras não conseguem superar a descrição
visual, a presença marcante e enternecedora.
Mas tive de perguntar, tive de desafiar
aquela quase mudez e conhecer um pouco de sua tão afamada sabedoria sertaneja.
Então indaguei se era verdade que possuía poder de profetizar sobre estiagens,
chuvaradas, tempos de rebanhos sendo devorados por urubus, famílias inteiras
rumando pelas estradas para fugir das secas devastadoras. Ele ouviu tudo de
cabeça baixa, mas em seguido lançou o olhar perante o horizonte e respondeu:
Quem sou eu sou moço, quem sou eu. Tudo o que sei é pela vida vivida.
Apertou os olhos, ainda lançados na
distância, e continuou: Todo o povo do sertão conhece o seu mundo. Não conheço
mais do que ninguém não. O que sei é pelo que enxergo na terra, na mata, no
bicho berrando, no jeito do sol sair e da manhã despontar. Também ninguém vai
achar que o mandacaru fica triste porque vem coisa boa. Agora mesmo não tem
nenhum passarinho cantando. Chuva tem, mas tempo bom não será.
E muito mais ouvi do Senhor Orelino. Trago
comigo o seu retrato em preto e branco, pois retrato antigo. Tão antigo e
verdadeiro que é impossível encontrar uma moldura de agora.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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