SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 11 de setembro de 2015

O retrato de Orelino Quixabeira


Rangel Alves da Costa*


Batizado e registrado como Aurelino Cristosildo dos Santos, porém conhecido somente como Orelino Quixabeira. É comum no sertão que os nomes sejam abreviados de modo que a pronúncia não dê muito trabalho à língua. Já Quixabeira surgiu por causa da árvore vistosa que noutros tempos dava sombreado e quixaba na malhada da moradia.
É homem simples, pacato, se mantendo silencioso, reticente quanto à presença de estranhos. De estatura mediana, magro, de um moreno abrasado de sol, rosto enrugado pela idade e pelas durezas nas lides do dia a dia. Usando chapéu de couro já carcomido de tempo, calçando roló em igual estado, veste uma calça remendada e uma camisa sem cor definida. Diz que é roupa de trabalho e que não reparasse por estar vestido assim.
Não sabe dizer a idade, indicando apenas que já passou dos setenta. Parece ter mais. Se de um lado há o reconhecimento da força do homem sertanejo, que segundo Euclides é antes de tudo um forte, não se pode negar o tronco forte que vai se alquebrando pela vida difícil que leva, pelo sofrimento com as secas e pelas tantas e mais tantas dificuldades que tem de vencer para continuar sobrevivendo. E há sempre uma família dentro da casinha de barro e cipó.
Cheguei à presença do Senhor Orelino já ao entardecer de um dia escaldante. E foi tarefa difícil vencer as veredas espinhentas até chegar ao seu pedacinho de chão. Mesmo com as chuvaradas que de vez em quando caem, ainda assim o sertanejo se mostra receoso e preocupado com a estação. As chuvas são poucas, são apenas de molhar chão e esverdear o mato, juntar alguma água nas fontes, mas não na quantidade suficiente para garantir plantio.
Embrenhei-me na mata exatamente para saber do Senhor Orelino a sua percepção sobre este momento duvidoso para o sertanejo. Mas não fiz a escolha ao acaso. Depois de ouvir dois pequenos agricultores da região, fui logo encaminhado até que, segundo os informantes, era a pessoa mais capacitada para falar de sertão e de tudo o mais que quisesse saber acerca de chuva, de sol, de seca, de esperança e sofrimento.
Ouvi ainda que o Senhor Orelino é tido e reconhecido como verdadeiro profeta da região. Conhece quando o tempo vai ser bom de plantio, sabe dizer se a seca vai ser duradoura ou passageira, conhece quando vem trovoada, sabe até o tamanho da dor e do sofrimento que espera o sertanejo. E tudo através da leitura dos sinais da natureza. Dizem que ouve a voz do vento, conversa com as folhas, segreda com os troncos mortos e as folhas vivas.
Um sertanejo com tais características não pode deixar de ser conhecido. E foi assim que cheguei até sua cancela. Silêncio total, porta e janela fechadas, o tronco da quixabeira servindo como tamborete na malhada, um cachorro magro que nem deu importância ao visitante, e a ventania zunindo nas folhagens distantes. Nenhuma plantação avistada nem bicho de criação pastando pelo descampado ao redor. O chão tingido de verde, mas nada de terra sulcada à espera de semente.
Continuei batendo palma e logo gritei o conhecido “oi de casa” sertanejo. A porta lentamente começou a se abrir e então pude divisar uma pessoa nas sombras do interior do casebre. “Oi de fora. E se é de Deus seja bem-vindo”, foi a resposta. E logo uma feição tipicamente nordestina atravessou a soleira. O Senhor Orelino se encaminhava em minha direção como se não desejasse que, ao menos por enquanto, sua cancela não fosse ultrapassada. Primeiro queria saber o que ali fazia tão estranho forasteiro.
Sou sertanejo também, logo me apresentei. Pode entrar, foi a permissão recebida, e logo tive apontado na direção do tronco da antiga quixabeira. Preferi ficar em pé, olhando no olho daquele homem tão autêntico como a própria terra. Suas palavras eram poucas, quase nenhuma, mas eu nem pensei em fazer perguntas e mais perguntas. O que eu tanto queria saber já estava praticamente escrito naquele olhar, naquela feição, naquele jeito de ser. Assim ocorre quando as palavras não conseguem superar a descrição visual, a presença marcante e enternecedora.
Mas tive de perguntar, tive de desafiar aquela quase mudez e conhecer um pouco de sua tão afamada sabedoria sertaneja. Então indaguei se era verdade que possuía poder de profetizar sobre estiagens, chuvaradas, tempos de rebanhos sendo devorados por urubus, famílias inteiras rumando pelas estradas para fugir das secas devastadoras. Ele ouviu tudo de cabeça baixa, mas em seguido lançou o olhar perante o horizonte e respondeu: Quem sou eu sou moço, quem sou eu. Tudo o que sei é pela vida vivida.
Apertou os olhos, ainda lançados na distância, e continuou: Todo o povo do sertão conhece o seu mundo. Não conheço mais do que ninguém não. O que sei é pelo que enxergo na terra, na mata, no bicho berrando, no jeito do sol sair e da manhã despontar. Também ninguém vai achar que o mandacaru fica triste porque vem coisa boa. Agora mesmo não tem nenhum passarinho cantando. Chuva tem, mas tempo bom não será.
E muito mais ouvi do Senhor Orelino. Trago comigo o seu retrato em preto e branco, pois retrato antigo. Tão antigo e verdadeiro que é impossível encontrar uma moldura de agora.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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