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sexta-feira, 4 de setembro de 2015

CURRALINHO, BEIRADEIROS E HISTÓRIA


Rangel Alves da Costa*


Curralinho, povoado localizado no sertão sergipano de Poço Redondo, às margens do São Francisco, possui uma denominação apropriada ao seu primeiro contexto histórico enquanto porteira para os sertões. Com efeito, o nome Curralinho vem de curral pequeno. É diminutivo da expressão portuguesa “curral”. E foram os currais pequenos – ou curralinhos – que permitiram a povoação não só daquelas beiradas de rio como da região interior sertaneja.
Curralinho foi a porta de entrada para o que se tem hoje como município de Poço Redondo. Esperava-se que Bonsucesso, povoação igualmente ribeirinha, por ter suas margens avistadas um pouco antes que Curralinho, ali recebesse as embarcações que começavam a trilhar pelos caminhos das águas de um mundo novo e desconhecido. Mas talvez porque as barrancas de Bonsucesso possuíssem maior declive que as de Curralinho, suas margens tivessem sido escolhidas como porto de fixação e passagem.
Antes que as revoltas coloniais impusessem uma debandada do litoral através das águas do Velho Chico, os sertões eram praticamente desconhecidos. Era uma verdadeira vastidão de terras da natureza, tomadas de plantas, de bichos, de mataria fechada. Os primitivos habitantes já haviam desaparecido nos confins de suas cavernas. Não havia estrada, não havia vereda, não havia sequer uma clareira aberta. Somente através das águas do São Francisco se poderia alcançar as entranhas desse mundo distante e tão hostil. E mesmo os que aportaram do litoral por necessidade ou fuga desconheciam o que poderiam encontrar adiante.
No leito das águas grandes, de lado a lado num piscoso caudal, as embarcações rumavam carregando vidas, sonhos, esperanças. Ora, aqueles desbravadores traziam consigo quase tudo que lhes restava do rebanho: boi, vaca, cavalo, jumento, cabrito. E quanto mais adentravam pelos sertões mais se enchiam de espanto pelo desconhecido além das margens do rio: apenas a mata virgem, fechada, talvez perigosa demais. Mas tinham de escolher lugares mais apropriados para desembarcar seus rebanhos. Alguns resolvendo ficar numa margem mais aberta, outros preferindo as proximidades da mataria. E assim as ribeiras do rio foram sendo povoadas pelos criadores e seus rebanhos. Estava cumprido o destino do Rio dos Currais, como o São Francisco também é chamado.

E Curralinho fez parte dessas escolhas. Ao despontarem na curva do rio e avistar um verdadeiro planalto antes que as serras escondessem os mistérios de mais adiante, aqueles viajantes não duvidaram que ali fosse o local ideal para descerem os bichos e providenciar cercados. Tais cercados, de madeira cortada nos arredores, foram os primitivos currais sertanejos. Os bichos precisavam de currais para não debandar e então pequenos cercados, verdadeiros curralinhos, foram sendo espalhados de canto a outro.
Assim, Curralinho nasceu de uma escolha feita por viajantes das águas. Suas margens - ali mesmo onde hoje se ergue a povoação - serviram como assentamentos aos forasteiros até que estes enveredassem pelas entranhas da terra. E não demorou muito para entrassem mataria adentro, passando o facão e o machado no que encontrassem pela frente, até fazer surgir os primeiros pastos e as primeiras fazendas. Mas em Curralinho permaneceram aqueles que sentiam melhor diante daquele espetáculo maravilhoso do rio. Daí que todas as raízes familiares da povoação remontam a estes primeiros desbravadores.
Relembrar Curralinho antiga é reencontrar uma visão ao mesmo tempo bucólica, pujante e humilde. Um lugar com duas situações de moradias distintas. Uma rua da frente, defronte ao rio, com suas casas e casarios imponentes, curvas arquitetônicas em cada detalhe, moradia dos mais abastados e melhorados de vida, ainda que riqueza mesmo não houvesse mais. E outra logo atrás, na entrada de quem chega da sede municipal, com casas mais simples e famílias mais empobrecidas, ainda que um ou outro casarão entremeasse em tal paisagem. As casas defronte ao rio com calçadas que chegavam aos três metros ou mais de altura, um verdadeiro perigo. Mas assim tinha de ser por causa das constantes cheias, cujas águas impiedosamente avançavam e acabavam inundando até as moradias da outra parte da povoação.
As cheias eram tão esperadas e tão constantes que os quintais também serviam para plantação de arroz. Mas quando as águas baixavam e o leito do rio voltava à normalidade, então Curralinho retomava um esplendoroso cotidiano. Velhos pescadores remendando suas redes debaixo de um imenso pé de tamarineiro localizado próximo à beirada das águas. Valter logo adiante ajeitando a sua bela canoa. Quase defronte ficava o salão de seu irmão Ciano, local ideal para a rapaziada jogar sinuca e bilhar. Da porta do salão avistavam-se muitas embarcações nas lides pesqueiras ou adormecidas às margens.
Também nas calçadas altas ficavam as vendas de Chico Bilato, Seu Neguinho e outros beiradeiros. Uma cerveja pedida diretamente da prateleira ou da geladeira a gás. Uma talagada de vinho jurubeba, uma tubaína com bolachão, tudo chegado de Pão de Açúcar ou Propriá. E ao entardecer de calçadas e proseados, homens e mulheres colocavam suas cadeiras nas calçadas e deixavam seus olhares se perderem naquele rio/mar adiante. A mais bela das visões de um povo com sua grandeza histórica. Os vapores, as canoas de toldas, as carrancas na proa das embarcações, e de repente aportando e pessoas descendo ou subindo, sacos de alimentos ou de carvão, todo um comércio fazendo ali seu percurso.
Enquanto o sol do entardecer dava os últimos afagos nas águas, o lendário João de Virgílio já havia feito umas três viagens, e a pé e descalço, entre Curralinho e a sede municipal. Na cabeça levava e trazia caixa, saco e até caixão de defunto. Mesmo no meio da noite ele pegava a estrada para ir à cidade providenciar o caixão barato. E todo santo dia fazia o mesmo percurso muitas vezes. Saía de Curralinho, subia e descia ladeira e seguia em frente. Num desses retornos teve um mal súbito e tombou solitário na estrada.
Quem chega hoje a Curralinho nem imagina sua riqueza histórica, sequer conhece a passagem de Antônio Conselheiro pela região, também não tem conhecimento da profunda religiosidade de seu povo. Em 1874 o beato missionário incentivou a construção de uma capelinha em devoção a Nossa Senhora da Conceição, que ainda é avistada no alto. Defronte ao rio há outra igreja, construída em louvor a Santo Antônio e que possui um significado histórico indescritível. Na fachada principal, uma porta em madeira arrematada por um arco abatido. O belo frontão é encimado por uma pequena cruz. Noutros tempos, no altar havia imagens do padroeiro Santo Antônio, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e do Coração de Jesus. Destaque para a bela imagem de Nossa Senhora da Conceição, em madeira, que talvez já tenha sido retirada de lá.
Curralinho continua com sua história, mas apenas isso. Grande parte das principais famílias se mudou para a sede municipal. Poucos são os casarios que foram preservados ou ainda continuam existindo. Na maioria daquelas que eram suntuosas residências, hoje somente fachadas guardando a primorosa arquitetura de outros idos. No demais, apenas uma povoação ribeirinha para visitantes. E o pior aconteceu: enquanto pessoas de Poço Redondo constroem casas de fins de semana e até mansões, os moradores do lugar se veem cada vez mais empobrecidos. O lugar foi tomado, invadido, sem qualquer estrutura ou preocupação com a população. E o medo maior é que Curralinho tome o mesmo destino do Velho Chico e algum dia passe a existir somente no nome.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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