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terça-feira, 22 de setembro de 2015

METAMORFOSE (A NOSSA)


Rangel Alves da Costa*


Em seu livro mais famoso, A Metamorfose, o escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) desvela a condição humana de forma tão real como asquerosa. O que verdadeiramente é o homem? Há de se indagar, principalmente quando não tem mais serventia para a função materialista do mundo e tem de amargar a submissão e continuamente se sentir ameaçado pela sola dos sapatos dos seus e da sociedade. A dura analogia da transformação do homem à condição de verme e, como tal, sempre sujeito aos pisoteamentos e massacres do poder.
Originalmente um conto, A Metamorfose de Kafka trata sobre um homem comum que ao acordar descobre que o seu corpo está sendo transformado, aos poucos tomando a feição de um ser repulsivo. A transmudação de um sujeito normal em um inseto repugnante vai tomando rumos catastróficos. Mesmo querendo levar uma vida habitual, o sujeito vai sendo condicionado pelo seu novo estado. Trancado um quarto, rejeitado pela maioria dos conhecidos, de repente é avistado subindo pelas paredes. Já não passa de uma barata monstruosa e repelente, repulsiva a todos. Tenta fugir e é ferido pelo próprio pai, ferimento este que vai dominando suas forças até definhá-lo completamente, minguando como um bicho asqueroso qualquer.
A Metamorfose é também a simbologia da desvalia humana e de sua impotência para qualquer ação ante a realidade que o cerca. Mesmo transformado num bicho monstruoso, o sujeito ainda ouve tudo o que dizem a seu respeito, ainda tem sentimentos, ainda consegue discernir o que desejaria encontrar. Mantinha a família com o seu trabalho, mas agora se vê enojado e até odiado pelo que inesperadamente aconteceu na sua vida. Um triste e inexplicável acontecimento que vai levando a existência de um ser ao mais reles do chão. Uma barata, um inseto nojento, um bicho repulsivo. O que será do homem ao chegar a tal estágio?
O mais doloroso é sentir-se em tal condição e não poder reagir. Em meio aos presumivelmente normais e sadios não há lugar para parasitas. E assim, na solidão de seu quarto, sem voz nem poder de ação, envolto em dor física e espiritual, sente apenas as solas do mundo querendo pisar sobre si para expurgar de vez aquela abominação da existência. Neste sentido, talvez a verdadeira visão de ser repulsivo não estivesse no resultado da transformação, mas tão somente no homem visto como ser econômica e socialmente imprestável. Aquele que agora rasteja já não interessa àqueles acostumados a rastejar pelos seus pés.
Gregor Samsa, o personagem de Kafka, pode ser avistado muito além das paredes de seu solitário quarto. No tempo presente, aquele inseto asqueroso, aquele bicho repelente, aquela barata repugnante, pode ser reconhecido em muitos seres humanos. O próprio mundo se incumbiu de metamorfosear não só a compleição física como os sentimentos e as virtudes. As realidades do mundo novo e contraditório, moderno e ainda tão primitivo, tecnológico e estarrecedor, logo cuidam de transformar o homem num ser estranho consigo mesmo, intimamente desconhecido e relegado às imposições de um mundo opressivamente voraz. Daí que as baratas kafkianas continuam proliferando a cada instante e por todos os lugares.
Mas a metamorfose kafkiana alastra-se por horizontes ainda maiores. A transformação do valoroso homem num ser negado ante sua nova condição está mais visível no mundo moderno do que se possa imaginar. Em qualquer quadrante da vida, basta que a pobreza ou a miséria de repente recaiam sobre o sujeito e logo este será avistado como aquele ser descrito por Kafka. Igualmente, basta que os infortúnios ou o desandar de caminhos escondam um pouco do sol do sujeito, e este sequer será avistado em meio às sombras. Em muitos sentidos, é o ter ou não ter que tende a transformar um indivíduo em parasita repulsivo, sempre na visão do dono da sola do sapato pronta para pisotear.
O Brasil, por exemplo, desde uns tempos para cá, a partir dos contínuos desacertos governamentais que transformaram o cotidiano da existência num caos, a metamorfose de Kafka não se cansa de provocar novos seres rastejantes, submissos, levados aos esgotos da desesperança. Ao invés daquele quarto onde Gregor Samsa suporta seu infortúnio, é no clarão do dia ou no negrume da noite que a população brasileira se vê subindo em paredes, andejando pelos esgotos, rastejando na cada vez mais difícil sobrevivência.
Na história de Kafka, quem começa a acabar com a vida do filho/barata é o próprio pai, após feri-lo nas costas. E na realidade brasileira atual, quem faz surgir os seres rastejantes e a cada dia pisoteia um pouquinho mais é a governança maior. O governo, criador de submissos que perambulam empobrecidos, desesperançados e desvalidos, a cada medida tomada para ajustar as contas da roubalheira desenfreada, é como se estivesse avançando com os sapatos da arrogância e da insensatez sobre os já indefesos seres.
Infelizmente, a visão do ser enojado e odiado descrito por Kafka é a mesma avistada na face do brasileiro comum. A cada manhã acorda mais empobrecido, mais aviltado na sua integridade humana. A cada manhã traz consigo um pouco mais dessa metamorfose cruel. E pelas favelas, nos distantes rincões, nos lugarejos empobrecidos, em meio à tristeza das ruas, as baratas rastejam sem rumo. Ou será o homem?


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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