SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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quarta-feira, 27 de abril de 2016

AS SOMBRAS DO CORONEL


*Rangel Alves da Costa


O coronelismo foi sepultado em cova rasa, sem cruz nem epitáfio e, por isso mesmo, seus fantasmas costumam assustar até os dias atuais. Na política, no poder, no eleitorado, na sociedade, na vida da população, muito do que se tem hoje ainda se ressente das aparições daqueles donos do mundo, senhores da justiça e do injusto, de paus mandados e de governantes, encabrestadores do voto e de parlamentares, possuidores da vida de bicho e gente, absolutos até onde quisessem mandar.
A terra do tempo se move para que os fantasmas ressurjam. Por todo lugar ainda é possível avistar o chapéu importado, o paletó de linho branco, a botina de couro reluzente e espora dourada, a taca de lanhar lombo de gente, o cajado para se sustentar dos pecados, o charuto de ponta amarelada pelo sumo da boca, a cusparada dizendo do tempo para o cumprimento da ordem, o olhar chispante e um combalido coração sem mágoas e sem remorsos.
Arrastando grilhões assim os fantasmas caminham em tempos outros. Ao redor do coronel um mundo só seu. No mundo dos coronéis, a vida partilhada em apenas alguns. Poder em demasia e desumanidade também. Mando sobre tudo e até sobre a vida do outro, principalmente do desafeto. Sem extremidade ou limite na manutenção de sua força, pois o seu mundo vai além do latifúndio para também se instalar nos currais das mais altas esferas dos poderes constituídos. Tudo nascido de uma junção de fatores como compadrio e troca de favores.
Cinzas putrefatas que ainda pensam em humilhar e submeter a tudo como um grande curral. E no mundo do coronel as chaves debaixo de suas botas. O poder, o mando e a influência acima, e embaixo a sociedade dependente. E o que mais se compraz em fazer é pisar cada vez mais forte sobre o seu chão, pois sabe que nele está o povo, a gente humilde, a classe assalariada, uma reles submissa e escravizada. Onde havia o senhor dono do mundo lá estava o escravismo, a submissão, a exploração, a negação do ser humano, a violência, o pavor.
Na cova rasa a terra revirada e a insistência de não morrer. Coronel de jagunço e tocaia, de emboscada e pistoleiro, de inimigo e de morte certa. Somente o outro de mesma patente e jagunçada era respeitado no mundo coronelista. Mas um respeito ocultando inimizade, ódio, vingança, jura de sangue. Num mundo assim, nenhuma valia possuía o cidadão comum, nenhum respeito possuía aquele que não fosse do círculo do alpendre e das entranhas do casarão. Mas o poder e a riqueza não podiam existir sem a força do simples humano.
Então a valia do ser enquanto escravo, subserviente, jagunço, pau pra todo mando e toda obra. Esta era a valorização do homem da terra. Mas somente para esvair-se debaixo do sol, levantando e baixando sua enxada, foice ou facão. Para nada mais do que ter filhas mocinhas e virgens e estas serem usadas e abusadas, por cima de camas de capim e espinhos, pela podridão sumarenta do poderoso algoz. Para tocaiar e matar inimigos ou qualquer um que não se ajoelhasse ante os insanos desejos coronelistas.
O jagunço preparava a sina, se amoitava por dentro do mato, perto das curvas de passagem pelos caminhos ou veredas, e esperava somente a aproximação do escolhido para apertar o gatilho. Um tiro só, no meio da testa. A orelha ou um dedo era cortado para servir de troféu e comprovação ao mandante e o restante acabava servindo como comida de urubu e outros bichos carnicentos. Sobre a vítima: um zé-ninguém que se negou a vender ao coronel seu pedacinho de chão por dois contos de reis. Ou vendia ou morria. Como não vendeu, morreu. Assim o sangue jorrando em muitos caminhos passados.
Enquanto a bota esmagava a vida e o destino, a cadeira do alpendre se balançava esperando o repouso de seu dono. Sentado, largamente abancado, de charuto descendo pelo canto da boca, pensativo, levemente batendo a bengala sobre o assoalho, parecia gente. Mas era apenas um coronel. Sobre o que meditava aquele senhor dono do mundo? Na flor do tempo. Sim, na flor do tempo. Uma flor que já sabia murchando e que logo findaria jogada ao chão: a morte. E tinha medo de morrer já sem a pétala de sangue e a temeridade do espinho. Na sua concepção, um coronel como ele não podia morrer sem levar pra cova o mesmo poder absoluto com o qual reinou perante bicho, terra e gente.
Mas a morte que consome a todos, também o poderoso definha. Aqueles senhores do engenho, do latifúndio, do curral eleitoral, do assistencialismo, do compadrio, do poder sobre os poderes, um dia foram sepultados em cova rasa, sem epitáfio de valia e honradez. Seus ranços e suas práticas, contudo, continuam insepultos. Por isso que muitos ainda são encontrados às sombras dos casarões do poder querendo mandar, querendo exigir, querendo o mundo em suas mãos. E tanto faz a nova realidade da legalidade e da democracia: tudo tem de ser pisado pelas suas botas.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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