*Rangel Alves da
Costa
O
coronelismo foi sepultado em cova rasa, sem cruz nem epitáfio e, por isso
mesmo, seus fantasmas costumam assustar até os dias atuais. Na política, no
poder, no eleitorado, na sociedade, na vida da população, muito do que se tem
hoje ainda se ressente das aparições daqueles donos do mundo, senhores da
justiça e do injusto, de paus mandados e de governantes, encabrestadores do
voto e de parlamentares, possuidores da vida de bicho e gente, absolutos até
onde quisessem mandar.
A terra do
tempo se move para que os fantasmas ressurjam. Por todo lugar ainda é possível
avistar o chapéu importado, o paletó de linho branco, a botina de couro
reluzente e espora dourada, a taca de lanhar lombo de gente, o cajado para se
sustentar dos pecados, o charuto de ponta amarelada pelo sumo da boca, a
cusparada dizendo do tempo para o cumprimento da ordem, o olhar chispante e um
combalido coração sem mágoas e sem remorsos.
Arrastando
grilhões assim os fantasmas caminham em tempos outros. Ao redor do coronel um
mundo só seu. No mundo dos coronéis, a vida partilhada em apenas alguns. Poder
em demasia e desumanidade também. Mando sobre tudo e até sobre a vida do outro,
principalmente do desafeto. Sem extremidade ou limite na manutenção de sua
força, pois o seu mundo vai além do latifúndio para também se instalar nos
currais das mais altas esferas dos poderes constituídos. Tudo nascido de uma
junção de fatores como compadrio e troca de favores.
Cinzas
putrefatas que ainda pensam em humilhar e submeter a tudo como um grande
curral. E no mundo do coronel as chaves debaixo de suas botas. O poder, o mando
e a influência acima, e embaixo a sociedade dependente. E o que mais se compraz
em fazer é pisar cada vez mais forte sobre o seu chão, pois sabe que nele está
o povo, a gente humilde, a classe assalariada, uma reles submissa e
escravizada. Onde havia o senhor dono do mundo lá estava o escravismo, a
submissão, a exploração, a negação do ser humano, a violência, o pavor.
Na cova
rasa a terra revirada e a insistência de não morrer. Coronel de jagunço e
tocaia, de emboscada e pistoleiro, de inimigo e de morte certa. Somente o outro
de mesma patente e jagunçada era respeitado no mundo coronelista. Mas um
respeito ocultando inimizade, ódio, vingança, jura de sangue. Num mundo assim,
nenhuma valia possuía o cidadão comum, nenhum respeito possuía aquele que não
fosse do círculo do alpendre e das entranhas do casarão. Mas o poder e a
riqueza não podiam existir sem a força do simples humano.
Então a
valia do ser enquanto escravo, subserviente, jagunço, pau pra todo mando e toda
obra. Esta era a valorização do homem da terra. Mas somente para esvair-se
debaixo do sol, levantando e baixando sua enxada, foice ou facão. Para nada
mais do que ter filhas mocinhas e virgens e estas serem usadas e abusadas, por
cima de camas de capim e espinhos, pela podridão sumarenta do poderoso algoz.
Para tocaiar e matar inimigos ou qualquer um que não se ajoelhasse ante os
insanos desejos coronelistas.
O jagunço
preparava a sina, se amoitava por dentro do mato, perto das curvas de passagem
pelos caminhos ou veredas, e esperava somente a aproximação do escolhido para
apertar o gatilho. Um tiro só, no meio da testa. A orelha ou um dedo era
cortado para servir de troféu e comprovação ao mandante e o restante acabava
servindo como comida de urubu e outros bichos carnicentos. Sobre a vítima: um
zé-ninguém que se negou a vender ao coronel seu pedacinho de chão por dois
contos de reis. Ou vendia ou morria. Como não vendeu, morreu. Assim o sangue
jorrando em muitos caminhos passados.
Enquanto a
bota esmagava a vida e o destino, a cadeira do alpendre se balançava esperando
o repouso de seu dono. Sentado, largamente abancado, de charuto descendo pelo
canto da boca, pensativo, levemente batendo a bengala sobre o assoalho, parecia
gente. Mas era apenas um coronel. Sobre o que meditava aquele senhor dono do
mundo? Na flor do tempo. Sim, na flor do tempo. Uma flor que já sabia murchando
e que logo findaria jogada ao chão: a morte. E tinha medo de morrer já sem a
pétala de sangue e a temeridade do espinho. Na sua concepção, um coronel como
ele não podia morrer sem levar pra cova o mesmo poder absoluto com o qual
reinou perante bicho, terra e gente.
Mas a
morte que consome a todos, também o poderoso definha. Aqueles senhores do
engenho, do latifúndio, do curral eleitoral, do assistencialismo, do compadrio,
do poder sobre os poderes, um dia foram sepultados em cova rasa, sem epitáfio
de valia e honradez. Seus ranços e suas práticas, contudo, continuam
insepultos. Por isso que muitos ainda são encontrados às sombras dos casarões
do poder querendo mandar, querendo exigir, querendo o mundo em suas mãos. E
tanto faz a nova realidade da legalidade e da democracia: tudo tem de ser
pisado pelas suas botas.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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