*Rangel Alves da Costa
Na terra
seca, esturricada de sol, e de repente surpreendida pelo pingo d’água, logo vai
subindo o barrufo perfumado a esperança. Nas entranhas da mata, as folhagens
rasteiras se abrem e se fecham. Sons e sombras vão e voltam em instantâneos da
vida: os bichos do mato em seu habitat e afazeres de canto a outro. O grilo
cricrilando, dia e noite, seu som inconfundível. É sempre ouvido e nunca
encontrado, assim como mais um mistério da natureza. A borboleta adentra pela
janela, faz seu rasante, pinta de cor as velhas coisas e as velhas paisagens
depois vai embora. A plantinha resseca e morre mesmo sendo aguada todos os
dias, mas outra, bem ali na proximidade, floresce com flor avermelhada e sem
nenhum cuidado. A ponta de pedra não, mas o espinho sempre permanece escondido
por cima da estrada. E não há sola de sapato que se veja livre de sua pontuda,
pois parece armado em punhal para ferir. O pardal deixa a mata e vem morar na
cumeeira da casa. Suja tudo, é espantado, mas não vai embora. Será preciso que
chegue o gavião para expulsá-lo dali. Ou sai ou vira carniça. Assim como aquela
que o urubu saboreia no meio do tempo. Bem a seu lado, a pedra tudo observa e
permaneça calada. Sabe que é melhor calar e fechar os olhos diante do urubu.
Tudo acontece assim, assim como um poema de Manoel de Barros.
No tempo
seco, o riacho morre, a fonte morre, o tanque morre, o bicho morre, a vida
morre. Na manhã seguinte ao pingo d’água caído, e tudo já estará diferente, não
de verdeja e brotar, não de juntar água e escorrer, não de renascer para a
vida, mas tudo respirando diferente, demonstrando ainda força para viver.
Somente o calango suporta a pedra quente, escaldante, brasa viva no meio do
tempo, debaixo do sol. Mas é sua ligeireza que o faz suportar o fogo do tempo.
Nem pé bate o pé na brasa e já estará salteando na brasa seguinte, e assim por
diante. Triste é presenciar a solidão e o sofrimento do mandacaru. Dia e noite
debaixo do tempo aberto, recebendo sobre seus braços abertos o sol e a lua, só
lhe resta tempo para a oração. E quanta prece nasce em cada mandacaru do sertão
nordestino. E é a única espécie que resiste a tudo sem esmorecer de vez. A palma
seca, o xiquexique seca, o facheiro seca, tudo seca, tudo esfarela, tudo
fenece. Mas ele continua impávido em sua contínua oração. Mais adiante, em cima
do pé de pau de folhas mortas, o ninho de passarinho resta abandonado. A cobra
subiu lentamente e engoliu o peloco, o bichinho nascido na noite anterior. Mas
assim é a lei da sobrevivência na mataria, pois a mesma cobra teme ser
abocanhada pelo bico do gavião. E o gavião nem suporta avistar o menino adiante
com a peteca baleadeira à mão. Sabe que basta uma pedrada certeira e será o seu
fim. Assim como o fim de tantos passarinhos que piaram pela última e depois
foram parar em cima do braseiro do fogão de lenha. Tudo acontece assim, assim
como um poema de Manoel de Barros.
As
pequenas coisas, a singeleza e os pequenos encantos da vida, tudo como num
poema de Manoel de Barros, assim avistados nos primeiros versos de “O menino
que carregava água na peneira”:
Tenho um
livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse
que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe
disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso
............................
Assim, em
tudo há poesia, no grande e no pequeno da vida. O grilo é poesia, o sabiá é
poesia, a pedra é poesia, o vento é poesia. O menino que brinca num quintal com
sua fazenda de ponta de vaca não passa simplesmente seu tempo de criancice, mas
faz poesia. Bem assim o caroço de feijão que se negou a cair na panela e foi
varrido para o quintal e aí brotou o inesperado. Tudo é poema. Assim como um
poema de Manoel de Barros.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Todo cenário é composto por alguma beleza. Cabe aos poetas encontrá-la, e retratá-la.
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