Rangel Alves da
Costa*
Em tempos
de graúdas rapinagens, de raposas grandes flagradas com as garras na botija,
eis que me chega a recordação de outros tipos de sem-vergonhices, de ladroices
que mais pareciam brincadeiras diante das tramoias de agora. Nada mais do que
espertalhões interioranos acostumados a roubar galinha dos quintais alheios, a
meter a mão no fundo do ofertório da igreja matriz, a roubar no peso e na
medida.
Outro dia,
Totonho Cirineu debulhava suas memórias acerca desses ladrõezinhos de meia
tigela e seus maus costumes quase lendários. Dizia do furtador de flores e
cotocos de velas do cemitério, do malandrim acostumado a levar fiadas de arame
dos cercados, do larápio viciado em roubar doce de criança, do mão-leve expert
em namorar velha viúva somente ao final do mês. Teve que só roubou coqueiro
alheio até o dia que despencou lá de cima, e já no chão ainda recebeu uma
chuvarada de coco.
E uma
história bem interessante: o ladrão dos suspiros e sonhos das solteironas. O
espertalhão frequentava as janelas mais chorosas do lugar, oferecia flores e
poemas rimados às desafortunadas de macho. Com olhar lânguido dizia palavras
bonitas, lançava as mais doces promessas, mas depois sumia. Então aquelas
titias se lançavam de vez aos umbrais da melancolia, dos choramingados, das
lágrimas. De repente ele retornava dizendo que tão bela flor só merecia um
jardineiro de roupa nova, por isso que, envergonhado, deixara de aparecer. E
logo lhe surgia à mão dinheiro contado e esperança infinita.
Mas nada
igual ao relato de Cirineu sobre o ladrão de calcinhas. Segundo o prosista, é
comum nas cidades interioranas que as mocinhas estendam nos varais suas roupas
íntimas após o banho ou a lavagem. Como os quintais eram abertos, e quando
muito tendo apenas cercas baixas por divisa com o mais além, os varais
estendidos ficavam à vista de todos aqueles que passassem pelos fundos das
casas. Gente passava e sequer dava qualquer importância ao que estivesse
dependurado, mas com outros eram diferente.
Meninote
pulava no quintal para afanar fruta madura, caída do pé, ou mesmo agindo com
rapidez para subir tronco acima e recolher o caju, a goiaba, a manga. Não lhe
interessava mais que isso, ao menos que avistasse no varal uma calcinha
pendurada. Sentia-se despertado ante a peça íntima, soltando um sorriso de
safadeza, mas nada que fosse além de um interesse proibido e próprio da idade.
Mas certos adultos, mesmo avistando ao longe o varal, bastava que enxergassem
aquilo que lhes parecia uma calcinha e logo ficavam açulados.
Por isso
mesmo que muito marmanjo já foi pego cheirando roupa de mulher pelos quintais.
Certa feita, um rapazote estava tão entretido cheirando e beijando uma calcinha
rendada vermelha que nem se deu conta que alguém se aproximava. Quando viu
diante de si o dono da casa com charuto descendo no canto da boca e espingarda
na mão, já era tarde demais. Não deu tempo nem de correr. Teve de vestir a
calcinha e sair pela porta da frente todo se requebrando.
Mas
episódios seguidos começaram a colocar em polvorosa os quintais. De repente e
calcinhas e mais calcinhas simplesmente começaram a sumir dos varais.
Esquecidas, as mocinhas novamente estendiam suas delicadezas nos arames e em
pouco tempo o canto estava mais limpo. Logo se espalhou a notícia da existência
de um ladrão de calcinhas pelos arredores, e que era preciso muito cuidado
porque podia se tratar de um tarado pronto para atacar também suas donas. E foi
um assanhamento danado.
Mas quem
será esse ladrão, uma perguntava a outra, mas sem qualquer pista. A velha
senhora, relembrando episódio antigo no mesmo sentido, achou melhor minimizar a
situação e dizer que talvez fossem gaviões os responsáveis por aqueles furtos. Tudo
para não dizer que havia sido o próprio namorado, então falecido esposo, que
apaixonado furtava o calçolão para colocar debaixo do travesseiro. Que gavião
que nada, dizia outra, deve ser mesmo aquele rapazinho que saltita cheio de
delicadeza. Mas de jeito nenhum, cortava a outra, para ajuntar que aquilo era
mesmo coisa de gente safada, de algum pervertido que fazia da calcinha alheia a
mulher que não tinha.
Resolveram,
então, que as calcinhas seriam colocadas novamente nos varais, só que a partir
de então sob a vigília de homem da casa. Seria a única forma de pegar no flagra
o tal ladrão e desmascará-lo de vez. Mas as calcinhas passavam as noites
embaladas ao vento sem que ninguém aparecesse para levá-las. Uma semana, duas
semanas assim, até que a vigilância acabou. Até que numa manhã nenhuma peça
íntima foi encontrada.
Levaram
todas as calcinhas de todos os quintais e varais da cidade. Então o mundo
desabou novamente. Foi um vexame danado. A velha senhora insistia para que
olhassem para o alto para ver se algum pássaro graúdo passava de calcinha. O
poeta do lugar logo encontrou inspiração: “Foi-se uma calcinha, depois outra e
mais outra. Quantas calcinhas voarão para que tenhamos ninhos de tantas
delícias?”.
Neste
ponto Cirineu deu por encerrado seu causo. Mas um cabra se levantou raivoso e
exigiu o final da história, com a indicação do ladrão. Não suportando desfeita,
então o prosista remendou: “Só pode ter sido as almas do outro mundo, pois até
hoje nunca se ouviu dizer que tivessem coragem de dizer que foi o senhor seu
avô”. E até hoje o sopapo rola.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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