Rangel Alves da Costa*
Sou pessoa de duas moradas. Mesmo habitando
na capital sergipana, ainda possuo porta e janela no berço de nascimento. Vivo
na capital, mas sou sertanejo, e por isso mesmo conheço as duas faces de
meninos existentes aqui e lá.
Os meninos sertanejos, desde o nascimento, se
diferenciam muito dos nascidos nas capitais e grandes centros urbanos. Talvez
as diferenças sejam avistadas desde a concepção, vez que grande parte das
gestantes sertanejas não possui acompanhamento pré-natal.
Consequência da ausência de cuidados
especiais e de procedimentos que garantam uma gestação saudável é o nascimento
de filhos frágeis e doentios, já vindo ao mundo com enfermidades difíceis de
serem curadas no difícil cotidiano de sobrevivência.
Diferentemente da capital, onde os partos são
feitos em maternidades, clínicas e hospitais, no sertão ainda se nasce através
de parteiras. Mesmo que as unidades de saúde interioranas recebam as mães em
estado de parto, muitas gestantes sequer se deslocam até os centros de
atendimento.
Enquanto as crianças nascidas na capital
chegam ao mundo com acompanhamento de obstetra, anestesiologista, enfermeiros e
outros profissionais, nas distâncias matutas é a velha parteira que se desdobra
até que o menino chore e seja passada a tesoura no cordão umbilical. E à luz de
candeeiro, tendo por suporte apenas alguns panos e bacias contendo água.
Ao nascer, todo menino é menino em qualquer
lugar. Tendo leite, o peito da mãe é também igual em qualquer lugar. Menino
chora o mesmo choro, sente a mesma fome, faz o mesmo pipi. Mas as igualdades
parecem parar por aí.
Menino da capital geralmente vem ao mundo já
tendo enxoval, berço e outras utilidades e mimos. Acredite ou não, mas pelos
arredores sertanejos uma só roupinha não é adquirida pelos pais. Pela pobreza
mesmo, pela falta de condições de sequer ter no armário um pacote de fraldas.
Tantas e tantas vezes o menino só não
permanece nu como nasceu porque vizinhos e amigos auxiliam com um presentinho
ou outro. Fralda descartável é até coisa estranha em muito lugar. Depois de
nascer o menino vai usando pano até sujar, lavar e usar novamente. Qualquer
roupinha de feira, qualquer talco de pó, qualquer alfazema, tudo é
contentamento.
Menino da capital ouve cantiga de ninar, é
mimado e paparicado, e dorme feito um anjinho. Por cima do berço nuvens
passeando e estrelas subindo e descendo. Uma beleza aos olhinhos inocentes. Menino
do sertão é deitado em cama comum e nunca ouve que dorme neném que a mamãe vai
ao jardim buscar flores perfumadas. Quando muito um boi, boi, boi da cara
preta...
Menino rico da capital só desce do braço para
o berço ou para o cercadinho cheio de brinquedos. Chegada a época de querer
ficar em pé sozinho, vai aprendendo a caminhar com a ajuda dos pais ou da babá.
Já no sertão é diferente. De repente o menino cai da cama e quando a mãe se dá
conta ele já está segurando num tamborete para se levantar.
E vai aprendendo a caminhar por conta
própria, num cair e levantar sem fim, todo nu e reinando sobre o que puder
alcançar. É nesse estágio, quando passa o maior tempo no chão, e tantas vezes
por cima da terra nua, que começa a ter contato com o barro. Então vai
remexendo no barro, enchendo a mãozinha e levando até a boca.
Ao sair da fase líquida, do peito e da
mamadeira, menino da capital passa a comer papinha industrializada, sopinha e
iogurtes. O menino sertanejo também come papa, mas de farinho d’água ou leite
aguado, quando a mãe mexe a comida no dedo e depois leva a porção até a boca.
Mas depois ele vai gostar mesmo é de comer do barro da parede.
Mais crescidinho, geralmente já frequentando
alguma creche ou escolinha infantil, o menino da capital começa a tomar contato
com as tecnologias através dos brinquedos e dos próprios instrumentos
educacionais. Daí em diante será uma infância tendo à disposição desde
brinquedos tecnológicos às inovações utilizadas pelos adultos.
Enquanto, lá nos cafundós dos sertões, o
menino brinca com o que encontra ao redor. Daí brincar com toco de pau, com boi
de barro, com ponta de vaca, com o calango que se aproximar. Vira e revira pelo
quintal, vai inventando a diversão em qualquer inusitado que possa avistar.
O menino da capital frequenta a escola com
regularidade, tem professor, fardamento e material de apoio e tudo o mais que
lhe garanta estar inserido no mundo da aprendizagem através da educação
escolar. Já o menino do sertão não possui garantia alguma que vai crescer
sabendo ler e escrever.
Quando há alguma escola pelos arredores, a
matrícula feita nem sempre possui objetivos educacionais, mas apenas de ter
garantida a comida oferecida na merenda. Ou o menino enche a barriga com o que
a escola oferece ou corre o risco de passar fome em casa. Por isso mesmo que
tanto faz o lápis sem ponta ou o caderno sem folhas, pois o que importa mesmo é
ter algum alimento.
E assim os dois meninos vão crescendo. O
destino é indiferente na capital ou interior. E não é difícil ocorrer que
aquele crescido comendo barro e teve por solado o espinho, mais tarde tenha uma
formação muito mais aprimorada que o citadino. Doutor na honra, na dignidade,
na veracidade humana.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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