Rangel Alves da Costa*
As paisagens descritas por Jorge Amado são
mistas de simplicidade e de ferocidade nas tramas que nelas se desenrolam. Não
ferocidade de truculência ou barbárie, mas pela força e contundência dos
personagens perante os seus mundos. Desse modo, em Jorge Amado a descrição de
um terreiro de umbanda é entremeada de uma profunda simbologia. A simples
citação de uma ladeira antiga traz consigo todo um contexto histórico de luta e
de cotidiano sofrido de um povo negro marcado pelo açoite da cor.
Seus livros são muitos e neles as múltiplas
descrições de paisagens, contextos e cenários. Contudo, nenhuma descrição surge
sem um pano de fundo maior, forte, instigante. Aquelas terras inóspitas,
medonhas, com veredas perigosas e cheias de jagunços, tocaias e emboscadas,
simbolizam toda uma luta de homens destemidos enfrentando o perigo para
demarcar suas terras cacaueiras, e que mais tarde frutificaram em poder e
riqueza.
Do mesmo modo, um casarão de coronel
cacaueiro não remete apenas à riqueza do homem, mas principalmente o poder
político e econômico nascido da luta renhida pela terra e pelo confronto com
desafetos de igual poder. O que pretende dizer é que da luta pela terra até a
frutificação do cacau dourado foi sendo gestada toda a história da região
cacaueira da Bahia, bem como a influência que os seus senhores passaram a ter
nas cidades, nos centros urbanos e por todo lugar. Os coronéis e sua decisiva
influência na história nordestina e brasileira.
Quando Jorge Amado cita cadeias imundas e
delegados “pau mandado”, não se refere apenas a uma situação envolvendo uma
trama. Há uma crítica explícita às muitas perseguições políticas ou meramente
preconceituosas contra classes empobrecidas. Grita em favor dos negros
perseguidos pela cor, pelo credo, pela própria desvalia da vida. Diz do
sofrimento imposto aos pais, mães e filhos de santo, aos que optavam pela fé
dos atabaques, dos agogôs e dos deuses africanos. Tudo isso foi magistralmente
abordado por Jorge Amado nos seus cenários e personagens.
Os bordéis de Jorge Amado vão muito além de
meros cabarés. Aliás, bordéis ganham status de centros de poder e de local de
tomada de decisões dos coronéis que neles tinham assento e cama garantidos. Já
os cabarés se voltam à descrição de situações miseráveis nos prostíbulos
interioranos. As cafetinas famosas ou as balofas donas de casas da luz
vermelha. Prostitutas falsamente importadas da França e raparigas novinhas enxotadas
dos sertões e fazendo vida nas beiras de estradas ou nas imundícies das vilas
raparigueiras. Nada mais que um reflexo da sociedade de então e que ainda hoje
é avistada com quase a mesma feição.
O cenário do coronel cacaueiro, do jagunço e
da tocaia, outro não é que o contexto histórico da formação de povoações
através da luta e de muito sangue derramado. O cenário da violência contra os
terreiros, da perseguição aos negros e pobres, da intolerância por razões
políticas, outro não é senão uma crítica à forma como o preconceito tiranizava e aprisionava aos costumes ainda
vigentes à época da escrita amadiana. O cenário da mulher sendo enxotada pela
família e tendo que se prostituir para sobreviver, outro não é que aquele mesmo
ainda avistado em muitos rincões nordestinos ou mesmo nos centros urbanos.
Contudo, há um cenário que reputo como o mais
poético, ainda que também doloroso e triste, na obra amadiana. Em diversos
livros Jorge Amado colocou o cais baiano como tela de fundo para o
desenvolvimento de suas tramas. Assim acontece em Capitães da Areia, Jubiabá, A
Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água, Mar Morto, Os Velhos Marinheiros, Os
Pastores da Noite e Suor, dentre outros. Em todos há um cheiro de mar, de
maresia, um murmurejar de ondas batendo e voltando, barcos sendo avistados ao
longe, velas acesas nas proximidades das águas, esperanças que vão e que vem,
vidas que se fazem e se perdem na beira do cais. É este cais que tanto comove
na obra de Jorge Amado.
O cais de Jorge Amado é cheio de mistério e
magia, é povoado de pessoas e sonhos, é entremeado de esperanças e desilusões.
É como se avistasse os barcos apinhados de cestos de frutas olorosas cortando
as águas para as areias do cais. É como se avistasse os velhos pescadores, os viventes
nos casebres ao redor remendando redes, limpando musgos das embarcações,
lançando tarrafas ao entardecer, revirando mais um gole de cachaça. Próximo ao
anoitecer e as mulheres aflitas em oração, lançando todos os rogos ao mar para
que seus homens vençam as tempestades.
Também um cais de pedras solitárias e
testemunhas de tantas vidas e tantas mortes. Cais onde os meninos de rua – os
capitães da areia – se reúnem ao anoitecer depois das proezas do dia. Ali nas
areias a cama, o travesseiro, a moradia na noite. Muitos sequer possuem ânimo
para a capoeira, chorar suas mágoas, cheirar cola de sapateiro, fazer do vício
um falso alento à dor. Tantos outros sequer acordam para a dor do dia seguinte.
Ali mesmo são silenciados de vez pelas mãos ferozes que surgem nas noites sem
lua.
Cais tão pujante e tão triste este de Jorge
Amado. O mesmo cais onde as velas chamejam pelos orixás, flores são deixadas
para Iemanjá das águas e os capitães da areia adormecem e despertam para a
sorte do mundo.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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