SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 28 de agosto de 2015

SERPENTE NA RUA


Rangel Alves da Costa*


Eu vi uma serpente na rua, num calçadão de cidade grande, no principal centro comercial e onde pessoas incessantemente caminham. Era uma cascavel de mais de dois metros de comprimento e com um guizo em incansável chocalhar. E dizem que quando está assim é porque está pronta para o ataque.
Não sei de onde ela saiu, mas estava lá, se arrastando lentamente pelo calçadão. Contudo, parece que eu fui o único a avistá-la. O que mais instiga é que era praticamente impossível de uma venenosa daquelas, enorme, chocalhando sem parar o seu guizo, roçando em calcanhares e pés por onde passava, e ninguém tivesse se dado conta de sua presença.
A cobra imensa entre as pessoas e estas simplesmente caminhando. Não só caminhando como sentadas em bancos ao redor daquela inesperada e assustadora visitante. Mas como o povo iria temer, como iria se assustar, gritar, correr, fugir, se sequer dava a mínima atenção à sua presença? A não ser que de repente ela se lançasse num daqueles calcanhares e agulhasse seu veneno mortal.
Já vi tudo – ou quase tudo – naquele principal calçadão do centro da capital. Já vi gente tirar toda a roupa por não suportar o calor, já vi profeta prometendo o fim do mundo a cada dia, já vi homem estátua adormecer em cima de tamborete em pleno sol do meio-dia, já vi falso doente esmolando pelas esquinas, já vi cego de porta de igreja rejeitar moeda de baixo valor. Mas cobra, e principalmente uma cascavel, nunca havia tido o desprazer de encontrar.
Fico imaginando de onde ela pode ter surgido. Certifiquei-me e não havia nenhum circo pelos arredores, não havia mata nas proximidades de onde ela pudesse ter ido além, não havia escombros de construções de onde pudesse aparecer e seguir em busca de outro esconderijo. Também difícil que tivesse saído das águas do rio mais adiante. Será que alguém a levou em algum saco e permitiu que ela saísse em pleno centro comercial da cidade? Improvável que tenha acontecido assim.


Mas ela estava lá. Lenta, volumosa, porém barulhenta no seu chocalho ameaçador. Cabeça enorme, achatada, duas presas enormes e afiadas, um perigo ambulante. Bastava uma mordida e o sujeito morreria roxeado, sem respirar. O veneno logo lhe tomaria as entranhas e não haveria tempo nem de um socorro. E tanta gente correndo perigo, pois dezenas, centenas de pés passando lado a lado, quase pisando na própria morte. Realmente não sei como muitos não lançaram seus solados ou esbarraram seus pés bem à ponta das venenosas agulhas. Somente um milagre.
Que cena indescritível, a cobra no seu estranho mundo e eu sendo o único ser a percebê-la naquele passeio. Sentado num banco, outra coisa eu não fazia senão mirá-la em cada rastejo. Eu estava tão entretido com ela que se um elefante surgisse não daria a mínima atenção. Por falar em elefante, creio que uns dois ou três passaram por ali também. As pisadas eram tão fortes que o chão chegava a estremecer. E certamente também passaram onças, tatus, girafas, lobos, raposas, porco-espinho.
Ainda que todos os animais da floresta ali passassem, assustassem, ameaçassem, a verdade é que ninguém se importaria. O ser humano não se importa mais com nada, a não ser com a própria vida, e quando muito. O homem não se preocupa mais nem com o perigo nem com ameaça, nem com a tempestade nem com o vendaval. Não era assim, pois até mesmo a brisa lhe era sentida, mas depois foi se tornando insensível, petrificado, indiferente de tudo. Apenas segue, apenas vai adiante como um ser sozinho na multidão.
Se a indiferença também faz o homem cegar, talvez seja esta a explicação para que não avistassem a cobra. Mas por que eu, tão humano quanto os demais, pude avistá-la o tempo inteiro? Simplesmente porque ela não existia. Não havia cascavel alguma naquele calçadão, solta ao redor das pessoas. Talvez num instante de afastamento da realidade, simplesmente eu humanizei o mundo através de uma cobra inexistente.
Em devaneio, imaginei que ao menos diante do perigo o homem procuraria se proteger. A cobra inexistente sumiu, mas ainda hoje sento àquele mesmo banco esperando o seu retorno. Mas só passa gente, só passa ser humano. E quanta frieza, quanta impassibilidade, quanta indiferença.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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