Rangel Alves da Costa*
Do barro o homem, de barro a estrada, no barro
a sobrevivência e o ofício modesto de um povo humilde.
“Os pés vão descalços cortando caminho. Mais
longe um tantinho até chegar ao visgo marrom da terra no ribeirinho. Os olhos
avistam o barro com carinho e logo as mãos vão acariciar aquele desalinho...”.
O barro em tudo. A casa levantada no barro,
na ripa e no cipó, a cobertura de telha de barro cozido, o chão espalhando a
terra barrenta e dura.
“Quando a chuva cai mais tarde a molhação se
esvai. O fundo do barreiro a água retrai, pelo arredor o encharcado logo se
contrai e o visgo visguento endurecendo vai...”.
Ofício nascido no aprendizado, vindo de
geração após geração, o oleiro nasce para moldar o barro assim como o pássaro
para a revoada.
“Mão de moldar o barro, mão de moldar o pão,
colhe da terra seu fruto, faz do visgo seu grão. Barro batido e amolecido,
virado e remexido, não demora e será servido ao poder da criação. Será panela
ou tigela, pote ou boiada em magote, porrão ou cavalo de barro alazão?”.
Tantas vezes, desde a primeira raiz familiar,
que o barro é tido como sustento. A bisavó moldava para vender na feirinha, a
avó no mesmo ofício, e assim de pessoa a pessoa, e a cada tempo a mesma
maestria em cada peça criada.
“Quando o barreiro endurece e nenhum molhado
aparece, mesmo assim tudo acontece. Um pouco de água é lançado e fica tudo
lamaçado, visguento e amaciado, esperando que a mão se lance com aptidão,
sentimento e devoção”.
Do visgo do barro nasce tudo. As feiras
interioranas conhecem bem sua importância na vida. Num tempo de cozinha sem
luxo, com fogão de lenha e quase nada, qualquer comida existente cabe numa
panela de barro. E até hoje se tem como incomparável o sabor do alimento
preparado na fundura da argila.
“Vai Maria, vai João, vai o menino e o irmão.
O ofício é de geração, com cada seguindo o de então, numa arte em comunhão.
Enquanto um molda no barro a panela, outro apronta a tigela. Enquanto um faz um
alguidar, o outro reinventa seu moldar. E moldando pela vida, fazendo do barro
a sobrevida, todos na arte e na lida”.
Não há cozinha matuta que não tenha moringa,
pote, porrão, alguidar, panela, bandeja, bicho de menino brincar, enfeite de
colocar na mesinha, tudo feito no barro. O visgo do barro está tão presente na
vida dessas famílias que muitos preferem continuar com a panela rachando, já
carcomida pelo tempo, pelo fogo e pela fumaça, a ter um caldeirão novinho de
alumínio.
“Mas não é fácil não. É preciso saber, é
preciso ter coração. O barro não molda se faltar devoção, o barro não liga se
for amassado ao desvão, o barro não toma for se não for de coração. Entre o
oleiro e o barro existe uma tal comunhão que um vai sentindo o outro como se
fosse irmão”.
Assim é a vida do visgo do barro, da vida na
lama dando vida à arte, moldando o ofício de um povo que desde o amanhecer
desce ao barreiro para a transformação.
Poeta e cronista
blohgrangel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário