Rangel Alves da Costa*
No sertão, quem vê cara vê o coração. A
feição humilde do povo sofrido, o rosto sincero do povo lutador, a tez marcada
de esperança do povo trabalhador, tudo isso também revelado no coração desse
povo. Um povo sertanejo que não nega sua autenticidade nem vive a inventar uma
vida além daquela que realmente possui.
Logicamente que não todos, mas a grande
maioria da gente sertaneja guarda em si, dentro da alma, o que mostra na face.
É verdadeiro do lado de fora e por dentro, não guardando a desonra de ser
diferente daquilo que se mostra no seu dia a dia. Por isso que não adianta
pensar em ego sertanejo, mas tão somente uma junção singela de corpo e alma.
Por consequência, não pense em encontrar
diferente o que o sertanejo afirma ser de determinado modo. Ou é ou não é, sem
rodeios ou embromações. Daí sua coragem de enfrentar a difícil realidade sem
medo, daí o seu senso de verdade acima de tudo e de todos. Acaso diga que há
três dias não coloca uma panela no fogo por falta de arroz ou feijão, que
ninguém duvide do fogão em cinzas.
O senso de enfrentamento sem medo da
realidade é o que torna o sertanejo ajustado à terra, ao tempo, ao clima, ao
barro, ou ao pingo d’água, à molhação, à semente, à paisagem verdosa de seu
sertão. Assim como mandacaru espera mil anos a chuva chegar, mesmo que de
braços abertos implorando trovoada, assim também o homem da terra diante de sua
esperança imorredoura.
Por isso que nunca vive tempo ruim. Vive
tempos difíceis, mas não ruins. Na ótica sertaneja, o ruim é o que é provocado
pelo homem, é o que vem a mando ou por feitura humana, mas não aquilo que é da
vontade de Deus. Sua alegria e sua tristeza dependem das forças divinas. Os
tempos difíceis chegam para que o homem não se esqueça dessa força maior sobre
tudo. E é na fé, na oração, na força da religiosidade, que tudo se refaz depois
que a trovoada começa a cair.
Mas seja em tempos de bonança, com a terra
molhada, a boneca de milho brotando, o feijão em tempo de colheita e a melancia
e a abóbora ao redor, ou em tempos difíceis, quando tanto o homem como o bicho
não tem o que comer nem beber, a postura do sertanejo é uma só, sem mudar um
tantinho assim. A prova disso se dá toda vez que alguém, amigo, conhecido ou
forasteiro, bater à porta de sua casinha de cipó e barro.
É nas lonjuras sertanejas, nas moradias
esquecidas no meio do mato, ou mesmo nas pequenas propriedades de quintal,
malhada e dois bichos berrando, que o homem da terra mostra sua grandeza.
Avista-se uma casinha pobre – como de fato é -, um velho umbuzeiro ao redor, um
cercado de troncos caídos, uma desolação de doer no coração. Parece casa
abandonada, um lar deixado para trás por retirantes da seca. Não se avista
ninguém, nada se ouve além dos sons da mataria gemendo a secura e um cachorro
magro que surge do nada. Mas eis a pujança da vida.
Lá dentro talvez apenas tamboretes, alguns
utensílios de madeira, barro e alumínio, uma imagem do Senhor na parede de
barro, um candeeiro apagado, um velho jarro com velhas flores de plástico, pouca
coisa mais do que isso. Ou mesmo numa casa mais alentada, com mesa e cadeira de
pé, bico de luz, fogão a gás e até rádio ou televisão. Não importa. Pois o que
importa mesmo é a forma como o povo dessas moradias recebe o visitante.
Um toque na madeira e o silêncio lá dentro.
Passos se arrastam e chegam rente à porta para olhar pela fresta. Se é gente
desconhecida, espera-se que se anuncie. “Oi de casa, estou de passagem e queria
apenas um copo d’água, se acaso ainda restar no fundo do pote ou na moringa”.
“Oi de fora, se vem na paz de Deus, então espere que já vou abrir a porta. A
casa é de pobre, mas não deixa de matar a sede de quem caminha debaixo do sol”.
E assim a porta vai rangendo para aparecer o olhar sincero do morador.
Distante, profundo, parecendo de pouco brilho, mas com uma intensidade que
chega a encantar. Não há sorriso ainda, mas dentro da alma o coração já acolhe.
A partir de então o jeito de ser sertanejo se
mostra em toda sua dimensão. A moradia é pobre, pouca coisa em cima do fogão ou
no armário, mas logo surgirá a xícara apetitosa de café, o pão com manteiga, o
pedaço de bolo, a coalhada, o pedaço de queijo, o doce de leite ou de goiabada.
A água fresquinha da moringa é oferecida em caneca que chega a brilhar de tão
areada. E em tudo um prazer infinito de bem servir.
Assim no sertão, assim no coração sertanejo.
Por mais empobrecido que seja, seu pão será repartido e sua acolhida tão
cordial que não há palacete mais rico que ao menos pareça com esse reino de
grata humildade.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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