Rangel Alves da Costa*
Eu o conheço desde ainda menino de pé no
chão. Continua de pé no chão, andando e correndo descalço, mas já é um
adolescente, um rapazinho com seus treze ou quatorze anos. Não sei o seu nome,
nunca conheci seus pais, não sei onde mora. Talvez imagine onde mora, pois é
avistado pelas ruas e já o encontrei dormindo a sono solto numa calçada do
centro do capital. E já passava das oito da manhã.
Anda sujo, desalinhado, com roupa sempre
impregnada de chão, num constante vai e vem pelo centro da cidade. Vejo-o como
verdadeiro mistério. Às vezes imagino mentalmente afetado, outras vezes na
dolorosa normalidade. Gosta de correr pelas ruas, mas sem haver praticado
qualquer ilicitude. Já o vi cheirando cola ou solvente e certamente usa outros
tipos de entorpecentes. Já o avistei falando sozinho e também dialogando
normalmente com outro de igual idade e sina.
Como moro no centro da capital sergipana, ao
redor do seu mundo, quase sempre encontro esse menino pelos arredores. Ora me
faz lembrar aqueles capitães da areia descritos por Jorge Amado, ora vejo
refletindo o retrato doloroso da infância abandonada, dos meninos que crescem
pelas ruas, dormindo debaixo de marquises ou em calçadas nuas.
E são muitos assim, geralmente passando com
um pequeno frasco escondido na camisa repuxada e sendo levado à boca e ao nariz
para inalação. Ali uma mistura de éter, solvente, cola de sapateiro, ou
qualquer outra química produzida nas sarjetas, nos becos imundos, na desvalia
da vida. Sempre magros, vagarosos, sem encorajamento sequer para pedir uma
esmola.
Tais meninos perambulam pelos mesmos
caminhos, são avistados sempre do mesmo jeito, parecem não possuir qualquer
ofício mínimo de sustentação. Um ou outro passa com uma caixa de engraxate, mas
apenas isso. Como já são conhecidos e vivem em constância vigilância,
dificilmente praticam pequenos furtos. E nada de maior relevância ante a onda
de assaltos que assola a cidade. Mas são avistados cavoucando lixo, abrindo
sacolas imundas, levando à boca restos apodrecidos ou recolhendo coisas
imprestáveis.
Mas a realidade destes é muito diferente da
de outros meninos que são avistados pelo centro da capital. Enquanto aqueles
são meninos de rua, fazem dos logradouros e becos seus ambientes e moradias,
estes se deslocam da periferia, dos bairros afastados, para o convívio com o
mundo das drogas. Se aqueles perambulam cheirando cola ou experimentando de vez
em quando um arremedo de crack, estes sentam pelas calçadas, geralmente em
companhia de maiores, para o medonho ritual.
Estes sabem o querem nos centros urbanos. São
cuidadosamente viciados desde cedo por diversos motivos. Usuários e
repassadores de drogas possuem cuidado especial para com estes menores. Cuidam
de viciá-los para que se tornem dependentes e submissos aos seus escusos
objetivos. Daí que os menores amanhecem ao lado dos adultos pelas calçadas e
escondidos e logo servirão de entregadores. Quando apreendidos logo voltam às
ruas. Daí sua serventia.
Mas desde cedo também se tornam viciados sem
volta. Como chega um tempo que os adultos já não fornecem de graça uma grama
sequer, então têm de se virar para arranjar dinheiro e retornar para o seu
algoz. Contudo, sem trabalho, sem qualquer ofício que lhes garantam algum
valor, então começam com pequenos furtos, e daí numa progressão que redunda em
crimes de monta e violência exacerbada. Furtam, roubam, assaltam a mão armada,
cometem latrocínios, tudo são capazes de fazer para que o vício seja mantido.
E também ainda cedo, sem sequer terem
adentrado na idade adulta, e já perdem a vida. São mortos pelo próprio vício,
pelas gangues adolescentes que se digladiam disputando pontos, pelas
imperdoáveis dívidas contraídas, em confrontos com a polícia. Alcançam o cume
da perdição sem ao menos iniciarem a vida, chegam ao extremo dos assombros e
pesadelos sem jamais experimentar qualquer sonho bom. E logo ali muitos destes
poderão ser encontrados cimentando de espinhos suas estradas e cavando os próprios
túmulos.
Estes meninos e o outro menino fazem parte da
realidade medonha do mundo novo. Este eu avisto menino, caminhando ou correndo,
como que acostumado demais com o seu endereço a céu aberto ou o chão duro como
travesseiro e cobertor. Mas os outros, aqueles das calçadas do vício, das
drogas pesadas, não consigo enxergá-los senão como alegorias fantasmagóricas
segurando nas mãos pequeninas a mais triste das sinas. E não enxergam a vida
com outros olhos que não os do desapego e das alucinações.
Um menino, muitos meninos. Uma rua, muitas
ruas. Becos, sarjetas, escuridões em plena luz do dia. Um abandono, muitos que
se abandonam. O mundo é grande demais, mas não cabe tanta vida assim. Por isso
mesmo as infâncias acabadas antes mesmo que os meninos conheçam o prazer da
existência.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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