Rangel Alves da Costa*
Artisticamente, a natureza-morta é uma das
mais melancólicas formas existentes de pintura. Por mais cores que estejam
lançadas na tela, não há como deixar de avistar motivos sombrios, desolados e
tristes em cada quadro.
Logo se tem a sensação de abandono, solidão,
envelhecimento, tristeza. Como não há personagens humanos interagindo com as
formas, estas, solitariamente, passam a representar os sentimentos. E qual a
sensação provocada, por exemplo, com uma taça de vinho se derramando sobre uma
velha mesa?
As características dessa forma de expressão
artística são neste sentido. O artista representa seres inanimados, sem vida,
com a preocupação voltada para as formas, texturas e cores. Os objetos representados
são geralmente solitários, como que esquecidos ou abandonados ao passo do
tempo.
Daí que se torna muito fácil reconhecer uma
pintura representativa do gênero natureza-morta. Nela avistam-se frutas sobre
mesas, geralmente em bandejas ou dispostas desordenadamente. Uma ave morta
deixada sobre uma madeira, ainda com penas. Copos vazios, tigelas, taças,
moringas. Toda a pintura representando a solidão de tais objetos.
A ausência de seres humanos ou de qualquer
outra coisa que se relacione com os objetos dispostos sobre as mesas, bem como
o aspecto de abandono que envolve as frutas, as aves, os utensílios ou
quaisquer outros motivos, é o que torna a natureza-morta como visão solitária,
quase angustiante.
E mais aflitiva ainda quando as cores
utilizadas pelo artista são ocres, descoloridas, num sombreamento que apenas
reflete a forma do objeto. Ainda que na tela esteja um vaso florido e diversas
cores formando o contexto, ainda assim uma representação solitária. E assim
porque apenas um vaso de flores colocado sobre uma mesa e talvez abandonado
desde muito.
Não por acaso que a natureza-morta possui tal
denominação. Uma natureza que está morta. Tal natureza será a humana? Sim. O
artista utiliza-se de flores, frutas, vasos e outros elementos, para expressar a
fragilidade e a transitoriedade da vida. Há um sentido de morte em tudo, nas
flores secas, nas flores murchas, na fruta sem viço, na fruta cortada, na fruta
esquecida. Os ambientes sombrios, escurecidos, e os objetos ali dispostos como
se estivessem relegados ao esquecimento, tudo sintetiza a morte da natureza
humana.
A paisagem encontrada nas telas de
natureza-morta faz recordar outro tipo de natureza que também está sendo morta
a cada instante, a cada dia. A natureza paisagem humana, a natureza vegetação,
a natureza geográfica, a natureza da vida humana. Ao invés de flores tristes e
frutos dilacerados, o que se avista são árvores caídas, rios devastados,
animais mortos, fogueiras e fumaças tomando os espaços. Um grito de dor.
Assim na tela da pintura, assim na vida. Na
natureza-morta a solidão e a tristeza, o desalento e o abandono. Na natureza
morta a destruição, a degradação, as cores sombrias da devastação, as cores
ocres e acinzentadas das folhas que pendem sem vida a espera da ventania. Ali
um artista e sua expressão pessimista, aqui um homem e sua expressão de
violência contra a vida terrena. O pior que o homem que viola a natureza não é
um ser pessimista, mas um assassino da arte da vida.
Pensando bem, talvez aquela ave sem vida
pintada pelo artista queira também simbolizar a extinção de espécies da
natureza. Como a morte na natureza logo é esquecida para que mais vítimas
tenham o mesmo fim, então o artista que fixar a ideia da ave morta como um
exercício de futurologia. E no seu intimo talvez tenha concebido que ao menos
na tela, através da pintura, restará a recordação de uma codorna sem vida e
abandonada sobre a mesa.
A solidão na tela é a mesma solidão avistada
pelos campos sem vida, pelas paisagens tornadas em cinzas pela voracidade
humana. O aspecto sombrio da tela é o mesmo enxergado perante aquilo que era
verdejante, que corria em leito aberto, que brotava florido nas estações, mas
que anuviou pelas sombras da fumaça que ainda persistem como fantasmas na
natureza. As cores opacas, tristes, quase sem vida, não são diferentes daquelas
encontradas sobre os escombros ou pelas cinzas daquilo que um dia teve
exuberância enquanto paisagem.
Os principais pintores de natureza-morta
foram Paul Cézanne, Panfilo Nuvolone, Pieter Claesz, Giorgio Morandi, Braque, Albert Eckhout, Georg Scholz e
Matisse, dentre muitos outros. Já o homem como ser geral, mundano, provido de
existência e de arrogância destrutiva, é principal representante da natureza
morta. Melhor dizendo, da morte da natureza. Eu, você, os outros, todos,
indistintamente, somos responsáveis pela disseminação dessa infame arte, que é
a da destruição.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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