Rangel Alves da Costa*
O termo travessia soa aprazível, romântico e
até nostálgico. A musicalidade de Frenando Brant e Milton Nascimento trouxe do
seu conceito a noção de caminho, de estrada, de percurso de vida e de
existência. Aborda uma despedida e uma caminhada em busca da felicidade, não ao
lado do amor perdido, mas do que o mundo possa oferecer. “Vou seguindo pela
estrada me esquecendo de você, eu não quero mais a morte, tenho muito que
viver. Vou querer amar de novo e
se não der não vou sofrer. Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver...”,
diz a letra da música.
De forma poética, Fernando Pessoa sintetizava
a travessia como uma ação de mudança, de redirecionamento na vida. Eis o que
diz o bardo lusitano: “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas
que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos que nos levam
sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la,
teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.
Com efeito, travessia é, por definição, o ato
ou efeito de atravessar, de ir de um lugar a outro. Significa ainda a viagem de
um continente a outro, de um rio, de um mar, uma região. Na existência há
também a travessia da vida à morte. Mas também a travessia de vida a vida,
sendo esta a mais difícil de percorrer. E assim porque, como num mar, o
percurso da vida é cheio de calmarias e tempestades, de tempos azuis e de
incertezas nebulosas, de portos avistados e jamais alcançados.
Muitas são as situações de travessia. Em
todas o seguir caminhos em busca de novas situações, de novas realidades, de
novas experiências de vida. Abdica-se de uma inércia para se colocar em
movimento, e sempre procurando a realização de objetivos. O objetivo maior é
sempre chegar. Contudo, os modos como se dão as trajetórias é que demonstram se
os homens percorrem obstinadamente seus objetivos ou não. Logicamente que em
toda caminhada existem obstáculos, mas nunca mais fortes que o desejo de
vencer.
Como nada é estático, surge e permanece inalterado,
há um movimento próprio que impulsiona e transforma. Neste sentido, tudo está
em constante mudança. O passado, o presente e o futuro representam estágios
diferentes de uma só travessia. Desde os primeiros tempos, no início de tudo,
até os dias atuais, tudo em obediência a um mesmo percurso, sempre seguindo. Há
uma sequência de fatos e acontecimentos que vai permitindo as mudanças e a tudo
impulsionando. E se imaginaria que neste percurso o homem fosse aprimorando não
só seus objetivos como sua capacidade de tornar a travessia em algo proveitoso
a todos.
Contudo, assim não aconteceu. Ao invés de
facilitar a caminhada o homem espalhou labirintos, pedras e espinhos por sua
estrada. Esta trajetória humana, imaginada tão difícil nos tempos primeiros e
muito mais fácil nos dias atuais, acabou revelando que muitos preferem os medos
e as incertezas aos caminhos seguros. Não raro que entre clareiras o sujeito
prefira a toca das feras. E o mais impressionante ainda: prefere-se o perigo,
escolhe-se o medo, encaminha-se para onde possa causar a dor e o sofrimento.
Saindo de um ponto, atravessando caminhos
existenciais, tantas vezes atormentado por múltiplas adversidades, o que
pretenderá o homem com tal travessia? Apenas sair de uma situação de vida para
chegar a uma situação de morte, após realizar o percurso que lhe foi permitido?
A verdade é que o homem nada aprendeu na caminhada. Não de todo, pois foi se
tornando cada vez mais mestre no inimaginável ao homem moderno, ao homem novo
do mundo novo. Significa dizer que a travessia humana nada mais fez do que
tornar o homem num ser embrutecido e incivilizado.
Ora, em tempos outros muito se admitia pelo
desconhecimento, pelas limitações nas ciências e nas tecnologias e pela falsa
noção de que o sujeito estava, ele próprio, em permanente construção e,
portanto, se aprimorando cada vez mais. Mas no momento presente não se admite
mais dizer do primitivismo humano. Age primitivamente, de forma bárbara e
selvagem, e assim o faz porque resolveu tornar sua travessia num objetivo que
desafia a própria humanidade: dizimar-se a si mesmo e muito mais o outro.
De lá para cá, no que redundou, por exemplo,
a travessia do homem que faz da fé um fanatismo mortal, que faz do poder uma
arma para dizimar milhões de submissos e inocentes, que faz das tiranias e
ditaduras personificações pessoais da maldade, que ficam brincando de jogar
bombas de lado a outra de uma fronteira, que produzem e usam armas químicas com
a única intencionalidade de matar? Foi a
este porto, a este estágio que o homem tanto atravessou para chegar?
Nos últimos tempos outro tipo de travessia,
dessa vez por motivo de fuga e de ilusão de refúgio, vem mostrando a dor, o
sofrimento e a morte de desvalidos de muitas nações. Quando a família de Aylan
Kurdi embarcou na costa síria, em desesperada fuga, tencionando alcançar uma
terra segura e o menino de três anos acabou encontrado sem vida na beira da
praia, ali o exemplo maior da barbárie que o homem trouxe na sua travessia para
o tempo presente.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário