Rangel Alves da
Costa*
Noutros
tempos, nos idos de um sertão de bicho reinando por todo lugar e mato fechado
começando logo após o quintal, bastava que o caçador lançasse mão da velha
espingarda, do aió e de um tiquinho de farinha seca com pedaço de rapadura.
Estava equipado e preparado para ir atrás do alimento que a família tanto
necessitava.
E assim,
pelas veredas sertanejas, mesmo na sequidão do tempo e as incertezas da
estrada, seguia o humilde caboclo em busca do sustento dos seus. Pai de
família, com filhos pequenos para alimentar, não via outra saída senão lançar
mão da esperança em mais uma caçada. Intimamente sofria ao ver um bicho
sangrado e sem vida, mas a questão da sobrevivência chegava como um perdão ante
a sina da existência.
Se hoje
continuasse assim, nunca haveria a certeza de retornar sequer carregando uma
caça pequena. Os bichos sumiram, desapareceram de vez. Noutros tempos, quando a
mataria se espalhava por todo lugar, e entre catingueiras e umburanas eram
muitos os tufos de mato, havia fartura de bicho esperando a desdita da sorte.
Preá, nambu, codorna, caititu, veado, rolinha fogo-pagô, cágado, teiú, tudo
zanzando pelos escondidos, ao redor das locas das pedras, ao redor de
macambiras ou mesmo pelos descampados.
Uma
prática costumeira e que sempre dava bons resultados era esperar a bicharada ao
entardecer, nas beiradas das fontes, quando se dirigiam para matar a sede. O
caçador se amoitava ao redor e ficava à espreita da chegada de um e de outro. E
de repente a espingarda soltando fogo e a ave caindo após curto voo. Sofria
agindo assim, entristecia-se demais em ter de matar para sobreviver. Mas havia
Joaninha, Pedro e Maria que tanto necessitavam daquele pedaço miúdo e assado na
brasa.
Mas isto
noutros idos, pois com o passar do tempo tudo foi ficando cada vez mais
difícil. Sem bicho no mato não há caçada que seja proveitosa. Não é raro o
retorno desolado do caçador, entrando na porta de casa sem nada poder dizer.
Justificar o que se os olhos já se mostraram tristes ante o vazio do aió? Ora,
o aió está vazio, a espingarda sem uso, naquele dia sequer um preá pôde ser
avistado. Mas também quase não há mais preá. Nem codorna nem nambu, muito menos
bicho maior.
Quase não
há mais bicho no mato não por culpa do caçador. Acaso existissem somente os
sertanejos enveredando nas matas em busca de seu alimento, certamente que
continuaria fartura de toda espécie da fauna típica da região. Não foi o
caçador que espantou os bichos para distâncias sem fim, não foi o caçador que
promoveu a extinção, não foi o caçador que desmatou e tudo destruiu, deixando
em deserto onde havia pujante vegetação.
Certamente
que não foi o caçador que transformou a natureza sertaneja num lugar feio e
desolado. A vegetação foi sendo derrubada e com ela toda a vida. E sem planta,
sem árvore, sem pé de pau, sem tufo de mato, não há lugar para os bichos. Que
se imagine uma nambu sem galho de árvore ou uma rolinha sem poder voar de canto
a outro por falta de lugar de pouso e repouso. E os ninhos, as moradias dos
bichos, as flores e os frutos como alimento?
Hoje em
dia o sertão é uma tristeza só. Riachos sem matas ciliares e leitos escavados
pela ambição, e por isso mesmo semimortos e renegados ao empoçamento de doenças
e infestações. Vastidões inteiras como um campo aberto, nu, tomado de aridez e
desolação, e por isso mesmo sem qualquer vida ou utilidade. Por consequência, o
aumento dos períodos de secas, a demasia do calor e da pobreza além de todo
quintal. Que fez isto? O homem, mas outro homem, e não o caçador.
O caçador
vive da caça e não da mera destruição. Precisa daquele habitat nativo para que
seu alimento não possa faltar. Precisa da catingueira, do angico, da umburana,
da quixabeira. Precisa de qualquer pé de pau, de qualquer loca de pedra que
sirva de moradia ao bicho. O caçador precisa entrar na mata e encontrar o
bicho. Ou assim faz ou fará do retorno uma desesperança ainda maior. Colocar o
aió vazio num canto e dizer que não haverá preá torrado com farinha seca causa
a mesma dor que ouvir um pedido de um pedaço de pão e nada ter para dar.
E assim a
vida vai. A pobreza continua a mesma e maior ainda. A caça era o suporte ante a
necessidade, era a sobrevida na difícil sobrevivência. Quando a parca feira
acaba e não há alimento, quando a esmola lhe desvanece a alma e prefere sofrer,
então somente a prece para o alimento sagrado. E eis o verdadeiro milagre da
sobrevivência sertaneja: o choro da fome quase não é ouvido. Deus sempre mostra
um pão, seja na força invisível ou no amparo do irmão.
Mas o
velho aió continua num canto. E quem dera poder ir buscar no mato a comida da
mesa. Era só colocar num saquinho um pouco de farinha seca e um pedaço de
rapadura e seguir adiante. Era só encontrar o sertão como antes, e não este
deserto assim transformado pelos forasteiros.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário