SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 29 de outubro de 2015

AIÓ, FARINHA SECA E RAPADURA


Rangel Alves da Costa*


Noutros tempos, nos idos de um sertão de bicho reinando por todo lugar e mato fechado começando logo após o quintal, bastava que o caçador lançasse mão da velha espingarda, do aió e de um tiquinho de farinha seca com pedaço de rapadura. Estava equipado e preparado para ir atrás do alimento que a família tanto necessitava.
E assim, pelas veredas sertanejas, mesmo na sequidão do tempo e as incertezas da estrada, seguia o humilde caboclo em busca do sustento dos seus. Pai de família, com filhos pequenos para alimentar, não via outra saída senão lançar mão da esperança em mais uma caçada. Intimamente sofria ao ver um bicho sangrado e sem vida, mas a questão da sobrevivência chegava como um perdão ante a sina da existência.
Se hoje continuasse assim, nunca haveria a certeza de retornar sequer carregando uma caça pequena. Os bichos sumiram, desapareceram de vez. Noutros tempos, quando a mataria se espalhava por todo lugar, e entre catingueiras e umburanas eram muitos os tufos de mato, havia fartura de bicho esperando a desdita da sorte. Preá, nambu, codorna, caititu, veado, rolinha fogo-pagô, cágado, teiú, tudo zanzando pelos escondidos, ao redor das locas das pedras, ao redor de macambiras ou mesmo pelos descampados.
Uma prática costumeira e que sempre dava bons resultados era esperar a bicharada ao entardecer, nas beiradas das fontes, quando se dirigiam para matar a sede. O caçador se amoitava ao redor e ficava à espreita da chegada de um e de outro. E de repente a espingarda soltando fogo e a ave caindo após curto voo. Sofria agindo assim, entristecia-se demais em ter de matar para sobreviver. Mas havia Joaninha, Pedro e Maria que tanto necessitavam daquele pedaço miúdo e assado na brasa.
Mas isto noutros idos, pois com o passar do tempo tudo foi ficando cada vez mais difícil. Sem bicho no mato não há caçada que seja proveitosa. Não é raro o retorno desolado do caçador, entrando na porta de casa sem nada poder dizer. Justificar o que se os olhos já se mostraram tristes ante o vazio do aió? Ora, o aió está vazio, a espingarda sem uso, naquele dia sequer um preá pôde ser avistado. Mas também quase não há mais preá. Nem codorna nem nambu, muito menos bicho maior.
Quase não há mais bicho no mato não por culpa do caçador. Acaso existissem somente os sertanejos enveredando nas matas em busca de seu alimento, certamente que continuaria fartura de toda espécie da fauna típica da região. Não foi o caçador que espantou os bichos para distâncias sem fim, não foi o caçador que promoveu a extinção, não foi o caçador que desmatou e tudo destruiu, deixando em deserto onde havia pujante vegetação.
Certamente que não foi o caçador que transformou a natureza sertaneja num lugar feio e desolado. A vegetação foi sendo derrubada e com ela toda a vida. E sem planta, sem árvore, sem pé de pau, sem tufo de mato, não há lugar para os bichos. Que se imagine uma nambu sem galho de árvore ou uma rolinha sem poder voar de canto a outro por falta de lugar de pouso e repouso. E os ninhos, as moradias dos bichos, as flores e os frutos como alimento?
Hoje em dia o sertão é uma tristeza só. Riachos sem matas ciliares e leitos escavados pela ambição, e por isso mesmo semimortos e renegados ao empoçamento de doenças e infestações. Vastidões inteiras como um campo aberto, nu, tomado de aridez e desolação, e por isso mesmo sem qualquer vida ou utilidade. Por consequência, o aumento dos períodos de secas, a demasia do calor e da pobreza além de todo quintal. Que fez isto? O homem, mas outro homem, e não o caçador.
O caçador vive da caça e não da mera destruição. Precisa daquele habitat nativo para que seu alimento não possa faltar. Precisa da catingueira, do angico, da umburana, da quixabeira. Precisa de qualquer pé de pau, de qualquer loca de pedra que sirva de moradia ao bicho. O caçador precisa entrar na mata e encontrar o bicho. Ou assim faz ou fará do retorno uma desesperança ainda maior. Colocar o aió vazio num canto e dizer que não haverá preá torrado com farinha seca causa a mesma dor que ouvir um pedido de um pedaço de pão e nada ter para dar.
E assim a vida vai. A pobreza continua a mesma e maior ainda. A caça era o suporte ante a necessidade, era a sobrevida na difícil sobrevivência. Quando a parca feira acaba e não há alimento, quando a esmola lhe desvanece a alma e prefere sofrer, então somente a prece para o alimento sagrado. E eis o verdadeiro milagre da sobrevivência sertaneja: o choro da fome quase não é ouvido. Deus sempre mostra um pão, seja na força invisível ou no amparo do irmão.
Mas o velho aió continua num canto. E quem dera poder ir buscar no mato a comida da mesa. Era só colocar num saquinho um pouco de farinha seca e um pedaço de rapadura e seguir adiante. Era só encontrar o sertão como antes, e não este deserto assim transformado pelos forasteiros.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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