SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 4 de outubro de 2015

DEPOIS QUE O VELHO FECHOU A PORTA E PARTIU


Rangel Alves da Costa*


Presume-se que o velho tenha fechado a porta e partido, seguindo pela estrada rumo a um destino qualquer. Mas ninguém tem certeza disso. Ora, naquela idade, com mais de oitenta anos, difícil imaginar que o mesmo tenha encontrado encorajamento para fechar a porta de sua morada, deixar para trás os resquícios de toda uma vida, e saído por aí feito um São Francisco conversando com pedras e passarinhos. E havia ainda a motivação para tal. O que faria com que o velho deixasse o seu mundo em busca de outro mundo?
Com mais de oitenta e não menos que sessenta naquele lugar, fato é que o velho de repente não foi mais avistado abrindo sua janela nem pelos arredores do seu mundo. Quando o dia raiou a porta estava fechada e assim continuou. O antigo e carcomido banco de madeira não recebeu seu visitante naquela manhã nem ao entardecer, as plantas do entristecido jardim não foram molhadas, as folhas se acumulavam pelos canteiros e formavam um tapete de melancólica secura marrom esbranquiçada.
Não fosse pela porta fechada, a ausência do velho e o abandono das coisas simples, a paisagem em si estava normal, com a mesma feição de outros idos. A casa no meio do tempo, rodeada por algumas árvores sem sombreado e plantas com feição outonal, um espectro de jardim com canteiros tomados de folhas, um banco de mais idade que o seu dono. Uma ou outra borboleta, pássaros que desciam das árvores em direção aos galhos das plantas mortas. E o vento manso soprando para açular o silêncio pesaroso e aflitivo.
Na noite anterior à sua partida, o velho se demorou mais tempo do lado de fora do que o normal. A lua estava cheia bonita, a brisa fresca soprava em constância, em meio ao silêncio entrecortado de zunidos de grilos apenas uma feição de nostalgia tão própria das noites assim. Carregando uma xícara de café à mão, por muito tempo ele se deteve sentando no banco da madeira dos anos. Deixou a xícara por ali e se pôs a caminhar de lado a outro, com aspecto entristecido, ora com olhar vagando ao redor ora mirando o alto estrelado. Mas não se sabe o que lhe veio ao pensamento naqueles momentos.
Não se sabe ao certo a hora que se recolheu. Costumava apagar as luzes depois da dez horas, mas naquele dia elas estiveram apagadas o tempo inteiro. Apenas uma vela lançava uma pouca e amarelada luz ao redor do oratório. Assim, sem qualquer certeza de nada, impossível saber se ele decidiu tomar estrada ainda na noite ou logo ao alvorecer. A verdade é que a porta e a janela nunca mais foram abertas, ao menos pelo seu dono. Este simplesmente sumiu sem deixar rastros de sua direção. Mas havia apenas uma: o mundo.
Nunca havia visitante. A solidão do velho era a mais completa e absoluta. Não se sabe de parentes nem de amigos. Sempre viveu sozinho desde que chegou ao lugar. Tal solidão certamente já havia sido sua companhia desde os tempos de juventude, pois ali chegado ainda moço. Sobrevivia do que plantava e também de misteriosos recursos que recebia. Enviava missivas e embrulhos pelo correio e de vez em quando um cheque lhe chegava para ser descontado. Era escritor.
O conhecimento de seu ofício literário só foi possível após a sua partida. Durante dois dias seguidos a casa permaneceu fechada com a ventania açoitando sem poder entrar e apenas acumulando folhagens mortas ao redor. Mas no terceiro dia a janela amanheceu aberta e mais tarde a porta se abriu para a luz entrar. E lá dentro uma casa simples, diferenciando-se apenas nos muitos livros e nos escritos que se acumulavam por todo lugar. E sobre a mesa algumas folhas manuscritas e outra na máquina de escrever. Teria iniciado algum escrito, mas com poucas palavras: Um dia um velho decidiu partir...
Um dia um velho decidiu partir, apenas tais palavras soltas no papel. Não se sabe se escreveu sobre si mesmo ou se aquela frase lhe despertou o desejo de abandonar tudo e ir embora. Mas a resposta de tudo talvez estivesse noutro papel sobre a mesa. Ali, com letra miúda, estava escrito: Enfim, chegou o dia de partir. Já vivi sozinho grande parte de minha solidão e agora, mesmo envelhecido e já sem sonhos possíveis, só me resta viver a solidão da estrada, dos caminhos, dos sombreados das árvores. Até que eu encontre uma igreja e reze a minha última prece e em seguida vá recolher nas entranhas da floresta a madeira de minha cruz. E direi adeus no silêncio que me restar.
A casa agora era da ventania e das folhas mortas. Os escritos espalhados chegavam a esvoaçar e seguir aos espaços. O jardim abandonado e triste, mas não mais solitário. Ali uma cruz surgida e um epitáfio: Eis a flor que chora!


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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