Rangel Alves da
Costa*
Presume-se
que o velho tenha fechado a porta e partido, seguindo pela estrada rumo a um
destino qualquer. Mas ninguém tem certeza disso. Ora, naquela idade, com mais
de oitenta anos, difícil imaginar que o mesmo tenha encontrado encorajamento
para fechar a porta de sua morada, deixar para trás os resquícios de toda uma
vida, e saído por aí feito um São Francisco conversando com pedras e
passarinhos. E havia ainda a motivação para tal. O que faria com que o velho
deixasse o seu mundo em busca de outro mundo?
Com mais
de oitenta e não menos que sessenta naquele lugar, fato é que o velho de
repente não foi mais avistado abrindo sua janela nem pelos arredores do seu
mundo. Quando o dia raiou a porta estava fechada e assim continuou. O antigo e
carcomido banco de madeira não recebeu seu visitante naquela manhã nem ao
entardecer, as plantas do entristecido jardim não foram molhadas, as folhas se
acumulavam pelos canteiros e formavam um tapete de melancólica secura marrom
esbranquiçada.
Não fosse
pela porta fechada, a ausência do velho e o abandono das coisas simples, a
paisagem em si estava normal, com a mesma feição de outros idos. A casa no meio
do tempo, rodeada por algumas árvores sem sombreado e plantas com feição
outonal, um espectro de jardim com canteiros tomados de folhas, um banco de
mais idade que o seu dono. Uma ou outra borboleta, pássaros que desciam das
árvores em direção aos galhos das plantas mortas. E o vento manso soprando para
açular o silêncio pesaroso e aflitivo.
Na noite
anterior à sua partida, o velho se demorou mais tempo do lado de fora do que o
normal. A lua estava cheia bonita, a brisa fresca soprava em constância, em
meio ao silêncio entrecortado de zunidos de grilos apenas uma feição de
nostalgia tão própria das noites assim. Carregando uma xícara de café à mão,
por muito tempo ele se deteve sentando no banco da madeira dos anos. Deixou a
xícara por ali e se pôs a caminhar de lado a outro, com aspecto entristecido,
ora com olhar vagando ao redor ora mirando o alto estrelado. Mas não se sabe o
que lhe veio ao pensamento naqueles momentos.
Não se
sabe ao certo a hora que se recolheu. Costumava apagar as luzes depois da dez
horas, mas naquele dia elas estiveram apagadas o tempo inteiro. Apenas uma vela
lançava uma pouca e amarelada luz ao redor do oratório. Assim, sem qualquer
certeza de nada, impossível saber se ele decidiu tomar estrada ainda na noite
ou logo ao alvorecer. A verdade é que a porta e a janela nunca mais foram
abertas, ao menos pelo seu dono. Este simplesmente sumiu sem deixar rastros de
sua direção. Mas havia apenas uma: o mundo.
Nunca
havia visitante. A solidão do velho era a mais completa e absoluta. Não se sabe
de parentes nem de amigos. Sempre viveu sozinho desde que chegou ao lugar. Tal
solidão certamente já havia sido sua companhia desde os tempos de juventude,
pois ali chegado ainda moço. Sobrevivia do que plantava e também de misteriosos
recursos que recebia. Enviava missivas e embrulhos pelo correio e de vez em
quando um cheque lhe chegava para ser descontado. Era escritor.
O
conhecimento de seu ofício literário só foi possível após a sua partida.
Durante dois dias seguidos a casa permaneceu fechada com a ventania açoitando
sem poder entrar e apenas acumulando folhagens mortas ao redor. Mas no terceiro
dia a janela amanheceu aberta e mais tarde a porta se abriu para a luz entrar.
E lá dentro uma casa simples, diferenciando-se apenas nos muitos livros e nos
escritos que se acumulavam por todo lugar. E sobre a mesa algumas folhas
manuscritas e outra na máquina de escrever. Teria iniciado algum escrito, mas
com poucas palavras: Um dia um velho decidiu partir...
Um dia um
velho decidiu partir, apenas tais palavras soltas no papel. Não se sabe se
escreveu sobre si mesmo ou se aquela frase lhe despertou o desejo de abandonar
tudo e ir embora. Mas a resposta de tudo talvez estivesse noutro papel sobre a
mesa. Ali, com letra miúda, estava escrito: Enfim, chegou o dia de partir. Já
vivi sozinho grande parte de minha solidão e agora, mesmo envelhecido e já sem
sonhos possíveis, só me resta viver a solidão da estrada, dos caminhos, dos
sombreados das árvores. Até que eu encontre uma igreja e reze a minha última
prece e em seguida vá recolher nas entranhas da floresta a madeira de minha
cruz. E direi adeus no silêncio que me restar.
A casa
agora era da ventania e das folhas mortas. Os escritos espalhados chegavam a
esvoaçar e seguir aos espaços. O jardim abandonado e triste, mas não mais
solitário. Ali uma cruz surgida e um epitáfio: Eis a flor que chora!
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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