SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 3 de outubro de 2015

TÚMULOS E VIDAS


Rangel Alves da Costa*


Inegável que há vida após a morte. Inquestionável que a morte, apagando somente a existência, permanece como vida em todos os seus demais aspectos. Se finda a relação pessoal, o convívio, o compartilhamento de situações de existência, mas não a convivência espiritual e sentimental. É a força do sentimento, do apego de quem continua na terra, que possibilita a permanência simbólica daquele que partiu.
Ainda que muito tempo após o falecimento, sob os túmulos continuam sendo lançadas as sementes da vida, daquela permanência imorredoura. As pessoas não visitam os seus entes queridos, não zelam pelos túmulos, não colocam flores nem acendem velas, pelo simples fato da recordação nem por imitação de outros que assim procedem, mas porque buscam preservar os atributos da vida ainda que na morte. Exemplo disso é que a mente guarda o falecido em situações de existência, de presença, de momentos de convivência.
Portanto, inegável que partida da vida terrena certamente não exaure o significado da pessoa nem a sua existência. O fato do adeus não apaga a passagem nem faz transmudar o falecido em esquecimento. Não significa que continue vivendo como humano fosse, mas indubitável que permanece vivo na memória, na saudade, na presença do imortal amor.
Talvez imaginem o contrário e afirmem que com a morte se finda tudo. O término da existência física não significa, contudo, o fim da pessoa. E esta permanecerá, além do plano espiritual, também no plano terreno enquanto houver alguém que mantenha o falecido vivo no pensamento. É uma questão de permanência sentimental, de não afastamento daquele significado, de estar de alguma forma preservando aquela existência partida.
Daí, em casos assim, a importância da saudade, da memória, do pensamento, do apego, da constante busca pela presença do outro. Daí também a importância do luto, do pranto, da lágrima, da dor do adeus. Ainda que estes sejam tidos como passageiros, a verdade é que não se pode medir o tamanho de uma lágrima que vai se alargando em mar. Igualmente não se pode dizer que a saudade vai diminuindo aos poucos quando o íntimo clama a todo instante pela presença. E mesmo já passados muitos anos do adeus e da despedida.
Tudo afirmado acima não tem por base qualquer conhecimento científico, espiritual ou religioso, mas tão somente por uma percepção íntima do que seja a morte e seu significado perante os que aqui permanecem. Mas principalmente a partir de uma observação feita enquanto caminhava por um pequeno cemitério interiorano ao lado de parentes e amigos daqueles que estavam ali sepultados. Era um cemitério rústico, simples, quase familiar, nascido sem muros ao redor de uma pequena capela.
Com efeito, convidado para uma visita a Capela de Santo Antônio do Poço de Cima, ou simplesmente Igrejinha do Poço de Cima, distando cerca de dois quilômetros da cidade de Poço Redondo, quando ali cheguei já encontrei algumas pessoas caminhando ao redor dos túmulos. Eram, na maioria, da mesma linhagem familiar daqueles que ali jaziam em meio ao descampado da aridez sertaneja. Alguns túmulos muito antigos, sinalizados apenas por uma rota cruz ou mesmo com apenas uma pequena elevação de terra como sinal de sua existência. Outros mais conservados, com nomes e datas, e ainda alguns com lápides e fotografias.
Por não ser um cemitério municipal, a limpeza geralmente cabe aos próprios parentes dos falecidos. Por isso mesmo que de vez em quando o mato avança e cresce entre os túmulos, mas a secura da terra fazia com que plantas mortas, garranchos e gravetos, proporcionassem uma paisagem ainda mais angustiante. Realmente, não era fácil avistar aquelas pessoas humildes andando lentamente de canto a outro, de túmulo a túmulo de parentes, e silenciosamente mirar cada um por alguns instantes.
Geralmente em silêncio, mas não havia grito mais ensurdecedor. Sentia-se na face, no olhar, nas lágrimas, na tristeza de cada um. E não importava se a pessoa já tivesse falecido há vinte, trinta ou mais anos, pois o entristecimento era o mesmo. Mas certamente não era o mesmo para os familiares daqueles de partida mais recente, com feições ainda guardadas no altar do coração. Avistei uma senhora chorando ao lado de um túmulo recente e logo fiquei sabendo que se tratava de uma filha falecida a menos de um mês.
A filha então pranteada permanece viva naquela mãe. Aqueles com muito mais tempo de sepultamento, mesmo que não recebessem lágrimas sobre a cruz na terra, ainda assim continuavam presentes naqueles familiares entristecidos. E pelo fato da saudade, da recordação, do amor sentido, da necessidade de preservação da memória. O que há, na verdade, é apenas uma separação, mas não uma distância que leve ao esquecimento.
Assim, túmulos e vidas se comungam num só objetivo: avistar a porta por onde o outro partiu. Estando a porta fechada, nada mais resta a fazer senão imaginar a estrada percorrida através dela. E também dizer que nem tudo foi levado na partida, pois o que restou foi suficientemente forte para que se eternize a sua presença.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Ana Bailune disse...

Lindo texto!
Eu creio que existimos. E se existimos, continuaremos a fazê-lo após a morte, de alguma forma que eu desconheço, embora muitos creiam que já passamos por este processo - nascer e morrer e renascer - várias vezes. Cegos do túmulo ao berço, como diz um antigo poema árabe.
mas sempre digo á minha irmã, que perdeu seu filho há quatro anos: você precisa encontrar novos lugares onde achá-lo. Precisa construir novas estradas, pois não o encontrará onde está procurando, ele não está mais lá. Feche os olhos.
Bom domingo!