SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 23 de outubro de 2015

NO MEIO E DEPOIS DA TROVOADA


Rangel Alves da Costa*


Durante a estiagem, depois de muitos meses sem cair pingo d’água, as mãos se elevam aos céus, as bocas se lábios se desandam em oração, todos os santos e anjos são chamados à intervenção. Assim acontece no sertão. Joelhos envelhecidos se curvam aos oratórios, dedos calejados contam as contas dos rosários, imagens sacras são cada vez mais devocionadas. Além das rezas, das ladainhas, as missas de intenções, também as procissões pelas estradas matutas e empoeiradas. São Pedro, Santo Antônio, Divino Maior Pai Eterno. E lá vai o andor de um povo aflito. Mas tudo muda quando o céu escurece e as nuvens prenhes se aproximam. Agora o temor é outro, não da seca, mas da tempestade que possa cair. Quando os trovões ribombam e os relâmpagos estilhaçam os céus, então é um deus nos acuda. E quando a chuvarada relampejante, sob os acordes aterradores dos trovões, começa a cair, começa a se despejar com força, então os casebres se fecham, se amiúdam, se recolhem em medo. As rezas agora são outras, voltam-se para os santos protetores contra o desandar da natureza. Vidraças são cobertas, panos são colocados nas frestas, nenhum alumínio pode estar descoberto, ninguém pode mostrar alegria ou contentamento. Muita gente corre pra debaixo da cama, se entoca nos armários, começa a chorar desbragadamente. A cada trovão maior e mais preces são elevadas, a cada estrondo no alto mais o medo se entrega ao que Deus quiser. Valei-me Deus, nos acuda! Valei-me Deus, salvai-nos desse fim de mundo. A voracidade do vento ecoa os rogos do povo. As nuvens são amainadas. Os estrondos vão sumindo aos poucos. Apenas chuva de molhar a terra. Então as portas começam a se abrir. E tudo parece a Arca de Noé depois daqueles dias e quarenta noites. E tudo mundo sorrindo, contente, elevando outras preces. Pela vida e pelo renascimento da terra molhada.
Logo alguém se encaminha em direção ao tanque. Precisa saber se tanta água rompeu as bordas. Mal consegue caminhar com o lamaçal pegajoso, com os troncos caídos, com as galhagens que se estendem por todo lugar. Não há mais estrada, vereda ou caminho. Uma cobra boia sem vida. Assim também com um calango e um preá. A lama é tanta que mal dá pra caminhar. As botinas se enchem de água e de barro. Só mesmo um facão para afastar os galhos que se deitam sobre a acabação. Cinco minutos pra vencer coisa pouca de chão, mas não dura muito e avista o tanque transbordante inteiro. Nem parece aquele poço fundo, de barro e tristeza, com animais à beirada morrendo de sede. Agora outra visão, mas também entristecedora. Foi água demais caída em pouco tempo. O sertão não suporta tanta água em tão pouco tempo. Chuva boa é aquela que cai forte, mas logo se transmuda em chuvarada leve e compassada. Chuva muita prejudica tudo. A terra parece não gostar de beber água demais, pois logo rejeita e se transforma em enxurrada. E a enxurrada, ao invés de descer cada vez mais ao fundo da terra, lá embaixo onde as raízes aguardam uma molhação, simplesmente vai correndo por cima do chão, do barro, dos caminhos. Chuva boa é aquela que tanto molha como junta água e é absorvido nas profundezas. É esta que alimenta a terra, que enche tanques, fontes e barreiros, que faz o sertanejo se preparar para semear. Igualmente acontece se a semente é jogada depois da terra molhada, no ponto de vingar, mas depois cai uma trovoada de uma hora pra outra. Então estará tudo perdido. A terra será removida, a enxurrada cuidará de levar a semente, e nada daquilo que o homem fez trará qualquer resultado.
O sertanejo olha em direção ao tanque cheio, transbordante, mas não sente a alegria esperada. As bordas foram rompidas e as águas logo terão outro rumo. O tanque precisa de borda para acumular muita água e não ter de secar uns dois ou três dias depois. O fundo seco, sedento, vai chupando tudo que houver por cima. Mas seja a vontade de Deus, diz o homem num misto de contentamento e desolação. Alegra-se quando ouve um passarinho e mais ainda quando ele faz pouso numa catingueira adiante. Desde muito que não via nem ouvia passarinho por ali. Bastou chover que a vida parece ter sido refeita. E mais um, mais outro passarinho. Encontra um cágado no caminho de volta e passa a ter a certeza que mais trovoada não demorará a cair. Apressa o passo. Precisa reforçar o casebre, precisa se preparar para a força das águas muitas. Por enquanto é só esperar. Depois de que o sol novamente surgir há de se pensar no melhor a ser feito. Mas tudo tão molhado, tão cheio d’água que nem parece sertão. Mas é sertão. Irreconhecível por tanta água, mas é sertão. E tudo na lição do Eclesiastes: há um tempo pra tudo...


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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