Rangel Alves da Costa*
Durante a estiagem, depois de muitos meses
sem cair pingo d’água, as mãos se elevam aos céus, as bocas se lábios se
desandam em oração, todos os santos e anjos são chamados à intervenção. Assim
acontece no sertão. Joelhos envelhecidos se curvam aos oratórios, dedos
calejados contam as contas dos rosários, imagens sacras são cada vez mais
devocionadas. Além das rezas, das ladainhas, as missas de intenções, também as
procissões pelas estradas matutas e empoeiradas. São Pedro, Santo Antônio,
Divino Maior Pai Eterno. E lá vai o andor de um povo aflito. Mas tudo muda
quando o céu escurece e as nuvens prenhes se aproximam. Agora o temor é outro,
não da seca, mas da tempestade que possa cair. Quando os trovões ribombam e os
relâmpagos estilhaçam os céus, então é um deus nos acuda. E quando a chuvarada
relampejante, sob os acordes aterradores dos trovões, começa a cair, começa a
se despejar com força, então os casebres se fecham, se amiúdam, se recolhem em
medo. As rezas agora são outras, voltam-se para os santos protetores contra o
desandar da natureza. Vidraças são cobertas, panos são colocados nas frestas,
nenhum alumínio pode estar descoberto, ninguém pode mostrar alegria ou
contentamento. Muita gente corre pra debaixo da cama, se entoca nos armários,
começa a chorar desbragadamente. A cada trovão maior e mais preces são
elevadas, a cada estrondo no alto mais o medo se entrega ao que Deus quiser.
Valei-me Deus, nos acuda! Valei-me Deus, salvai-nos desse fim de mundo. A
voracidade do vento ecoa os rogos do povo. As nuvens são amainadas. Os
estrondos vão sumindo aos poucos. Apenas chuva de molhar a terra. Então as
portas começam a se abrir. E tudo parece a Arca de Noé depois daqueles dias e
quarenta noites. E tudo mundo sorrindo, contente, elevando outras preces. Pela
vida e pelo renascimento da terra molhada.
Logo alguém se encaminha em direção ao
tanque. Precisa saber se tanta água rompeu as bordas. Mal consegue caminhar com
o lamaçal pegajoso, com os troncos caídos, com as galhagens que se estendem por
todo lugar. Não há mais estrada, vereda ou caminho. Uma cobra boia sem vida.
Assim também com um calango e um preá. A lama é tanta que mal dá pra caminhar.
As botinas se enchem de água e de barro. Só mesmo um facão para afastar os
galhos que se deitam sobre a acabação. Cinco minutos pra vencer coisa pouca de
chão, mas não dura muito e avista o tanque transbordante inteiro. Nem parece
aquele poço fundo, de barro e tristeza, com animais à beirada morrendo de sede.
Agora outra visão, mas também entristecedora. Foi água demais caída em pouco
tempo. O sertão não suporta tanta água em tão pouco tempo. Chuva boa é aquela
que cai forte, mas logo se transmuda em chuvarada leve e compassada. Chuva
muita prejudica tudo. A terra parece não gostar de beber água demais, pois logo
rejeita e se transforma em enxurrada. E a enxurrada, ao invés de descer cada
vez mais ao fundo da terra, lá embaixo onde as raízes aguardam uma molhação,
simplesmente vai correndo por cima do chão, do barro, dos caminhos. Chuva boa é
aquela que tanto molha como junta água e é absorvido nas profundezas. É esta
que alimenta a terra, que enche tanques, fontes e barreiros, que faz o
sertanejo se preparar para semear. Igualmente acontece se a semente é jogada
depois da terra molhada, no ponto de vingar, mas depois cai uma trovoada de uma
hora pra outra. Então estará tudo perdido. A terra será removida, a enxurrada
cuidará de levar a semente, e nada daquilo que o homem fez trará qualquer
resultado.
O sertanejo olha em direção ao tanque cheio,
transbordante, mas não sente a alegria esperada. As bordas foram rompidas e as
águas logo terão outro rumo. O tanque precisa de borda para acumular muita água
e não ter de secar uns dois ou três dias depois. O fundo seco, sedento, vai
chupando tudo que houver por cima. Mas seja a vontade de Deus, diz o homem num
misto de contentamento e desolação. Alegra-se quando ouve um passarinho e mais
ainda quando ele faz pouso numa catingueira adiante. Desde muito que não via
nem ouvia passarinho por ali. Bastou chover que a vida parece ter sido refeita.
E mais um, mais outro passarinho. Encontra um cágado no caminho de volta e
passa a ter a certeza que mais trovoada não demorará a cair. Apressa o passo.
Precisa reforçar o casebre, precisa se preparar para a força das águas muitas.
Por enquanto é só esperar. Depois de que o sol novamente surgir há de se pensar
no melhor a ser feito. Mas tudo tão molhado, tão cheio d’água que nem parece
sertão. Mas é sertão. Irreconhecível por tanta água, mas é sertão. E tudo na
lição do Eclesiastes: há um tempo pra tudo...
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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