SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 2 de outubro de 2015

O exílio de O. H.


Rangel Alves da Costa*


Exilado por conta própria dentro da residência de mais de cinquenta anos de moradia, O. H. – pois não desejava maior identificação – quase sempre se negava a dar maiores explicações acerca daquela sua decisão maluca. Além de uns poucos amigos, não cabia a ninguém mais saber sobre suas motivações de agora estar conflagrado naquela situação. O exílio é para os fortes, para os que não aceitam as tiranias, para os que preferem a solidão da distância ao compartilhamento das desonras e opressões. Era o que permeava sua mente e sempre apto a escapar pela ponta da língua.
Ao modo dos degredados nas lonjuras do mundo, onde a distância e a saudade da terra natal os faziam desejosos por lembranças e recordações de proximidade, O. H. sempre pedia que em visita lhe levassem doces, queijos, cachaça da terra, até rapadura e jabá. E era sempre atendido pelos fiéis amigos. Os que chegavam com os presentes e guloseimas não deixavam, contudo, de fustigar o velho despatriado. Quem já se viu se exilar dentro das paredes da casa e sem jamais ter colocado os pés fora do país? Era a indagação que um fazia. Já outro amigo brincava perguntando se ainda avistava as sombras dos anos de chumbo e, por ter nascido tão indignado e revolucionário, inventava um exílio por precaução.
Era realmente uma decisão impressionante a de O. H., mas podendo ser tudo, menos exílio. Ora, não havia nada de expatriação, de banimento ou degredo, nem de ir além de fronteiras por conta própria ou devidamente forçado. O exílio, como se sabe, é um estado de banimento da vida civil e política, imposto ao indivíduo que contraria as regras vigentes da nação, forçando-o a deixar sua pátria. Ou mesmo a expatriação voluntária por não aceitar o status quo governamental ou para fugir às perseguições. No caso de O. H., esta seria a melhor a definição que se poderia encontrar: uma fuga de dentro para dentro, procurando na clausura o distanciamento de uma angustiante realidade. Mas que realidade seria esta?
Decidido a exilar-se, porém sem ao menos ultrapassar a porta da frente de casa, o que O. H. fazia poderia se caracterizar, quando muito, como um autoexílio interior. Para alguns não passava de hibernação, pois aquele velho e revoltado urso preferia se manter distante de tudo para realimentar suas forças revolucionárias. Para outros, não passava de uma reclusão premeditada com fins de meditação sobre os males do mundo. Mas a verdade é que o homem se dizia e se sentia num verdadeiro exílio. Prova disso é que perguntava a quem chegava como estava a vida no seu distante Brasil. E a pergunta sempre saía trêmula, com voz embragada e olhar sofrido.
Somente à sua esposa havia confessado os reais motivos de se manter distante de tudo, sem ao menos chegar junto à porta ou janela. Não lia jornais, não assistia nenhum noticiário na televisão, não lançava mão do rádio, não fazia nada que lhe trouxesse informação imediata sobre a vida do país. Contudo, quando algum amigo chegava tinha de lhe contar tudo detalhadamente, e tudo sobre tudo, principalmente sobre a situação política e governamental. Ouvia tão atentamente que parecia petrificado, demonstrava tamanha indignação que parecia avermelhar, ficava com a feição tão transtornada que chegava a molhar os olhos de lágrimas.
Mas o que O. H. confessou à esposa sobre a decisão de se exilar dentro da própria casa? Segundo ele, o verdadeiro homem jamais poderá aceitar que sua dignidade humana e sua integridade moral sejam atacadas por quem quer que seja, muito menos por aqueles que possuem o dever de velar pela honra da nação. Como um sujeito horando, já cansado de tanto lutar semeando seu grão para o desenvolvimento do país, pode aceitar que apenas alguns destruam o Brasil inteiro? Ou se combate o mal extirpando a maldade ou se ajoelha para continuar sendo açoitado. Como ele não nasceu para a submissão nem sozinho podia desfazer o nó viciado, então recorreu ao banimento por conta própria.
Segundo O. H., ainda justificando sua decisão, sua indignação era tamanha com os destinos que vinham impondo à nação e ao seu povo, que já havia até pensado em formar um grupo guerrilheiro antigovernamental e tomar o planalto de assalto. Mas logo percebeu que essa coisa de guerrilheiro nunca dá certo, principalmente pela traição de uma que se arvorava de ex-guerrilheira. Pensou em formar um partido revolucionário, formado basicamente por indigentes e renegados, mas depois pensou que partido político nunca resolve nada, principalmente pelo engodo de um que se negava dizer o nome.
A esposa sabia, contudo, que tais revelações eram mínimas, pois o seu verdadeiro ódio estava no miserável quadro que transformaram o país. Sua vontade maior era de jogar uma bomba pelos lados planaltinos, de modo a não restar nem siglas nem sombras. Como já estava envelhecido demais e também porque se negava a ser apenas mais um desvalido reclamando de tudo pelas ruas, achou melhor recolher-se no seu mundo e dar adeus aos escombros da realidade lá fora. Eis, assim, um homem e seu exílio. Não por ter sido expatriado, mas por que o seu mundo parece não mais existir e no seu chão só resta um poço sem fundo.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: