Rangel Alves da
Costa*
Exilado
por conta própria dentro da residência de mais de cinquenta anos de moradia, O.
H. – pois não desejava maior identificação – quase sempre se negava a dar
maiores explicações acerca daquela sua decisão maluca. Além de uns poucos
amigos, não cabia a ninguém mais saber sobre suas motivações de agora estar
conflagrado naquela situação. O exílio é para os fortes, para os que não
aceitam as tiranias, para os que preferem a solidão da distância ao
compartilhamento das desonras e opressões. Era o que permeava sua mente e
sempre apto a escapar pela ponta da língua.
Ao modo
dos degredados nas lonjuras do mundo, onde a distância e a saudade da terra
natal os faziam desejosos por lembranças e recordações de proximidade, O. H.
sempre pedia que em visita lhe levassem doces, queijos, cachaça da terra, até
rapadura e jabá. E era sempre atendido pelos fiéis amigos. Os que chegavam com os
presentes e guloseimas não deixavam, contudo, de fustigar o velho despatriado. Quem
já se viu se exilar dentro das paredes da casa e sem jamais ter colocado os pés
fora do país? Era a indagação que um fazia. Já outro amigo brincava perguntando
se ainda avistava as sombras dos anos de chumbo e, por ter nascido tão
indignado e revolucionário, inventava um exílio por precaução.
Era
realmente uma decisão impressionante a de O. H., mas podendo ser tudo, menos
exílio. Ora, não havia nada de expatriação, de banimento ou degredo, nem de ir
além de fronteiras por conta própria ou devidamente forçado. O exílio, como se
sabe, é um estado de banimento da vida civil e política, imposto ao indivíduo
que contraria as regras vigentes da nação, forçando-o a deixar sua pátria. Ou
mesmo a expatriação voluntária por não aceitar o status quo governamental ou para fugir às perseguições. No caso de
O. H., esta seria a melhor a definição que se poderia encontrar: uma fuga de
dentro para dentro, procurando na clausura o distanciamento de uma angustiante
realidade. Mas que realidade seria esta?
Decidido a
exilar-se, porém sem ao menos ultrapassar a porta da frente de casa, o que O.
H. fazia poderia se caracterizar, quando muito, como um autoexílio interior.
Para alguns não passava de hibernação, pois aquele velho e revoltado urso
preferia se manter distante de tudo para realimentar suas forças
revolucionárias. Para outros, não passava de uma reclusão premeditada com fins
de meditação sobre os males do mundo. Mas a verdade é que o homem se dizia e se
sentia num verdadeiro exílio. Prova disso é que perguntava a quem chegava como
estava a vida no seu distante Brasil. E a pergunta sempre saía trêmula, com voz
embragada e olhar sofrido.
Somente à
sua esposa havia confessado os reais motivos de se manter distante de tudo, sem
ao menos chegar junto à porta ou janela. Não lia jornais, não assistia nenhum
noticiário na televisão, não lançava mão do rádio, não fazia nada que lhe
trouxesse informação imediata sobre a vida do país. Contudo, quando algum amigo
chegava tinha de lhe contar tudo detalhadamente, e tudo sobre tudo,
principalmente sobre a situação política e governamental. Ouvia tão atentamente
que parecia petrificado, demonstrava tamanha indignação que parecia avermelhar,
ficava com a feição tão transtornada que chegava a molhar os olhos de lágrimas.
Mas o que
O. H. confessou à esposa sobre a decisão de se exilar dentro da própria casa? Segundo
ele, o verdadeiro homem jamais poderá aceitar que sua dignidade humana e sua
integridade moral sejam atacadas por quem quer que seja, muito menos por
aqueles que possuem o dever de velar pela honra da nação. Como um sujeito
horando, já cansado de tanto lutar semeando seu grão para o desenvolvimento do
país, pode aceitar que apenas alguns destruam o Brasil inteiro? Ou se combate o
mal extirpando a maldade ou se ajoelha para continuar sendo açoitado. Como ele
não nasceu para a submissão nem sozinho podia desfazer o nó viciado, então
recorreu ao banimento por conta própria.
Segundo O.
H., ainda justificando sua decisão, sua indignação era tamanha com os destinos
que vinham impondo à nação e ao seu povo, que já havia até pensado em formar um
grupo guerrilheiro antigovernamental e tomar o planalto de assalto. Mas logo
percebeu que essa coisa de guerrilheiro nunca dá certo, principalmente pela
traição de uma que se arvorava de ex-guerrilheira. Pensou em formar um partido revolucionário,
formado basicamente por indigentes e renegados, mas depois pensou que partido
político nunca resolve nada, principalmente pelo engodo de um que se negava
dizer o nome.
A esposa
sabia, contudo, que tais revelações eram mínimas, pois o seu verdadeiro ódio
estava no miserável quadro que transformaram o país. Sua vontade maior era de
jogar uma bomba pelos lados planaltinos, de modo a não restar nem siglas nem
sombras. Como já estava envelhecido demais e também porque se negava a ser
apenas mais um desvalido reclamando de tudo pelas ruas, achou melhor
recolher-se no seu mundo e dar adeus aos escombros da realidade lá fora. Eis,
assim, um homem e seu exílio. Não por ter sido expatriado, mas por que o seu
mundo parece não mais existir e no seu chão só resta um poço sem fundo.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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