SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 13 de outubro de 2015

SONATA PARA PIANO E LÁGRIMA


Rangel Alves da Costa*


Um acorde em meio à escuridão e logo as luzes do salão acesas. Os solenes castiçais desciam seus pingos luminosos sobre aquela imensidão solitária. A grande sala se estendia em paredes recobertas da arte mais valiosa: Rembrandt, Botticelli, Ticiano, Vasari. As janelas pareciam varais esvoaçando cortinados finos e luxuosos.
Noutros tempos, quando o fausto recobria de realeza aquele salão, as valsas mansamente desciam as águas do Danúbio e iam repousar nos lagos dos cisnes. O luxo se comprazia entre vinhos e perfumes, joias e vaidades, e assim as noites se prolongavam até o silêncio da solitária manhã.
Mas desde muito que nenhuma valsa, minueto, noturno ou prelúdio naquele salão. Agora, tantos depois, somente uma sonata para piano e lágrima. E sempre após o entardecer e se estendendo até os instantes mais silenciosos e tristes da madrugada. Não havia nenhum visitante, nenhum casal enlaçado seus passos pelo piso brilhoso. Apenas um piano ao fundo, numa meia-luz de quase escuridão. E uma mulher repetindo sempre os primeiros acordes de uma sonata sem fim.
Vestida de longo, preto e luxuoso, parecia magra. Cabelos longos, mas recobertos por uma espécie de véu que descia até a cintura, não deixava entrever sua idade nem sua feição. Porém os dedos longos e finos sobre o piano permitia imaginar ter mais de sessenta anos. Nada a fazia virar o rosto em direção ao salão. As cortinas se balançavam, o vento avançava num zunido leve, e ela sempre na mesma posição: sentada ante o piano e estendendo os seus dedos naquela sonata sem fim.
Após a madrugada já não havia mais um acorde sequer. Também não havia mais sequer as sombras daquela senhora e sua sonata sem fim. Não era avistada caminhando pelo salão e depois entrando em qualquer porta. Misteriosamente sumia para novamente reaparecer após o entardecer do dia seguinte. Quando as cortinas se agitavam como lenços aflitos era sinal de sua chegada. Todas as luzes se acendiam após o primeiro acorde. E dizem que assim desde os velhos tempos de salões embriagados pelos cálices tilintantes da nobreza.
Quando jovem e certamente a mais bela das damas, aquela mulher sonhou em ter o salão inteiro para a mais enamorada das valsas. Daria sua mão ao belo e jovem cavalheiro e os dois valsariam como duas aves que voam juntas sem direção. E depois receberia um anel dourado como compromisso para outras valsas e outros voos, para o amor prometido ao coração solitário. E por toda a mocidade esperou tal momento chegar sem que por aquelas portas entrasse seu cavalheiro de sonhos.
Decidiu não mais esperar. Decidiu também não mais sonhar com aquele que colocaria no seu dedo o ouro da vida em comum. Era muito jovem, mas resoluta em viver somente para os sonhos desfeitos, reclusa no seu quarto, ainda que os sons das pessoas no salão chegassem como palavras, sorrisos e acordes. Então se envolvia em lençóis até que o adormecimento em prantos trouxesse novamente o silêncio. E para o restante da vida.
Um dia, já numa idade imprecisa, encontrou o salão completamente tomado por folhas mortas. A ventania trazia aquele buquê de coisas tristes e ali deixava a cada manhã. E tudo se acumulava de tal modo que mais parecia um tapete de jardim outonal. E era outono. E um outono de tudo. Aquele cenário abandonado e melancólico sintetizava todas as solidões do mundo e todas as renúncias da vida. Apenas folhas, poeira, cortinas rasgadas, janelas abertas, abandono e tristeza.
A velha mansão de portões fechados mais parecia a angustiante paisagem avistada na Manhã de Outono, de Grimshaw. Nenhum ser sobrevivente da antiga linhagem familiar, agora restando somente o desalento e o abandono. Mas após o entardecer ainda se ouvia aquela melancólica sonata para piano e lágrima.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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