Rangel Alves da
Costa*
Um acorde
em meio à escuridão e logo as luzes do salão acesas. Os solenes castiçais
desciam seus pingos luminosos sobre aquela imensidão solitária. A grande sala
se estendia em paredes recobertas da arte mais valiosa: Rembrandt, Botticelli,
Ticiano, Vasari. As janelas pareciam varais esvoaçando cortinados finos e
luxuosos.
Noutros
tempos, quando o fausto recobria de realeza aquele salão, as valsas mansamente
desciam as águas do Danúbio e iam repousar nos lagos dos cisnes. O luxo se
comprazia entre vinhos e perfumes, joias e vaidades, e assim as noites se
prolongavam até o silêncio da solitária manhã.
Mas desde
muito que nenhuma valsa, minueto, noturno ou prelúdio naquele salão. Agora,
tantos depois, somente uma sonata para piano e lágrima. E sempre após o entardecer
e se estendendo até os instantes mais silenciosos e tristes da madrugada. Não
havia nenhum visitante, nenhum casal enlaçado seus passos pelo piso brilhoso.
Apenas um piano ao fundo, numa meia-luz de quase escuridão. E uma mulher
repetindo sempre os primeiros acordes de uma sonata sem fim.
Vestida de
longo, preto e luxuoso, parecia magra. Cabelos longos, mas recobertos por uma
espécie de véu que descia até a cintura, não deixava entrever sua idade nem sua
feição. Porém os dedos longos e finos sobre o piano permitia imaginar ter mais
de sessenta anos. Nada a fazia virar o rosto em direção ao salão. As cortinas
se balançavam, o vento avançava num zunido leve, e ela sempre na mesma posição:
sentada ante o piano e estendendo os seus dedos naquela sonata sem fim.
Após a
madrugada já não havia mais um acorde sequer. Também não havia mais sequer as
sombras daquela senhora e sua sonata sem fim. Não era avistada caminhando pelo
salão e depois entrando em qualquer porta. Misteriosamente sumia para novamente
reaparecer após o entardecer do dia seguinte. Quando as cortinas se agitavam
como lenços aflitos era sinal de sua chegada. Todas as luzes se acendiam após o
primeiro acorde. E dizem que assim desde os velhos tempos de salões embriagados
pelos cálices tilintantes da nobreza.
Quando
jovem e certamente a mais bela das damas, aquela mulher sonhou em ter o salão
inteiro para a mais enamorada das valsas. Daria sua mão ao belo e jovem
cavalheiro e os dois valsariam como duas aves que voam juntas sem direção. E
depois receberia um anel dourado como compromisso para outras valsas e outros
voos, para o amor prometido ao coração solitário. E por toda a mocidade esperou
tal momento chegar sem que por aquelas portas entrasse seu cavalheiro de
sonhos.
Decidiu
não mais esperar. Decidiu também não mais sonhar com aquele que colocaria no
seu dedo o ouro da vida em comum. Era muito jovem, mas resoluta em viver
somente para os sonhos desfeitos, reclusa no seu quarto, ainda que os sons das
pessoas no salão chegassem como palavras, sorrisos e acordes. Então se envolvia
em lençóis até que o adormecimento em prantos trouxesse novamente o silêncio. E
para o restante da vida.
Um dia, já
numa idade imprecisa, encontrou o salão completamente tomado por folhas mortas.
A ventania trazia aquele buquê de coisas tristes e ali deixava a cada manhã. E
tudo se acumulava de tal modo que mais parecia um tapete de jardim outonal. E
era outono. E um outono de tudo. Aquele cenário abandonado e melancólico
sintetizava todas as solidões do mundo e todas as renúncias da vida. Apenas
folhas, poeira, cortinas rasgadas, janelas abertas, abandono e tristeza.
A velha
mansão de portões fechados mais parecia a angustiante paisagem avistada na
Manhã de Outono, de Grimshaw. Nenhum ser sobrevivente da antiga linhagem
familiar, agora restando somente o desalento e o abandono. Mas após o
entardecer ainda se ouvia aquela melancólica sonata para piano e lágrima.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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