Rangel Alves da Costa*
Já envelhecida e sem forças para arrastar a
cadeira de balanço até debaixo do sombreado do pé de pau, ela pedia ao neto que
lhe ajudasse naquele compromisso de todo dia. O menino, por pura reinação,
sempre respondia que achava muito melhor deixar a cadeira dia e noite naquele
lugar, e certamente não faltaria gente para sentar. A velha senhora respondia
que assim não podia ser, pois precisava se balançar também na varanda da casa e
rente ao umbral da janela. Ai como gostava de estar ali observando o tempo
passar e também um monte de gente, tanto viva como morta, segundo ela mesma
dizia.
Desde a manhã até o entardecer – quando
mandava levar a cadeira para o sombreado no lado de fora – permanecia levemente
se balançando, mirando a rua velha e empoeirada adiante, com um olhar
entristecido de cortar coração. E de vez em quando também o olhar molhado,
navegando, singrando por mares somente por ela avistados. A lágrima fininha se
derramava pelo rosto enrugado e logo as gaivotas traziam um lenço para afastar
as águas do velho barco.
Com os olhos em céu de clamaria, então ela
apertava a visão para ter certeza de que era verdade aquilo que avistava. Então
a face aparentava um sorriso e as mãos chegavam a acenar àqueles que passavam
defronte sua janela, e tantas vezes com cumprimentos e outros gestos de
amizade. No seu mundo de ilusão e devaneios, idílios nostálgicos e fantasias da
idade, então ela reencontrava caminhos, pessoas, passos e realidades passadas.
E tudo como se realmente estivesse existindo adiante do umbral de sua
janela-mundo.
O tropeiro das lonjuras do tempo passava
conduzindo fardos e mais fardos em cima do lombo de burros arquejantes. A
carroça se aproximava rangendo pelo peso dos troncos enquanto o carroceiro
acendia seu cigarro de palha. O menino leiteiro chegava e depois de despejar um
litro na vasilha na passada da porta, dizia que o pagamento era para o outro
dia. Tudo num tempo distante, com pessoas já sumidas no mundo e situações agora
tão raras de acontecer. Mas tudo continuando a acontecer além daquela janela.
Praticamente vivia entre dois mundos: o da
janela adiante e aquele defronte ao varal. Pouca atenção dava ao mundo da casa
em si, seu interior de velharias e paredes tomadas de fotografias antigas. A
não ser o neto, pouco importava com os demais parentes que chegavam e saíam,
com as palavras lançadas em sua direção ou com os afagos de um e outro de vez
em quando. Mas o neto sempre lhe despertava atenção, e até parecia que ficava
mais entristecida e nervosa quanto o menino se ausentava por muito tempo. Por
isso não aceitava que ninguém mais levasse sua cadeira de balanço até o
sombreado ao entardecer no quintal.
A cadeira seguia na frente e ela atrás, devagar,
com passos lentos, mas sem deixar que parente algum lhe ajudasse. Dizia que
ainda podia andar sozinha e que num instante já estaria no seu outro mundo. E
que belo e rústico era aquele seu outro mundo. Um quintal interiorano,
arborizado, com árvores frutíferas, plantas medicinais, galinhas ciscando,
guinés correndo furtivos. Um velho tanque de lavar roupas, um tronco que servia
de banco, um pilão de herança familiar, xaxins naturais descendo pelas paredes
de barro. E o pé de pau sombreado tendo adiante um varal estendido.
Vagarosamente chegava e se ajeitava na
cadeira de balanço. Daí em diante tudo parecia um filme em sua mente, pois
transformava o varal numa verdadeira passagem para o mundo que somente ela
podia avistar. Com roupas estendidas ou não, ali no varal as pessoas de seu
mundo, os seus parentes de outros tempos, feições já distantes pela partida,
cenários desde muito transformados em memórias e saudades. Mas ela avistava a
tudo. E compartilhava o reencontro, silenciosamente falava e ouvia, brincava e
sorria, era menina e moça, era a amorosa mulher de um amor tão antigo. As
roupas balançando e ela reencontrando o esposo, o filho, a mãe, o pai, o avô.
Nas tardes de vento forte e varal afoito,
querendo lançar as roupas pelo ar, ela simplesmente dizia que ainda era cedo,
que esperasse um pouco mais que logo estaria ali para voar também. E voou à
chegada da lua, ainda ali no quintal. A ventania soprou e o lenço da vida se
desprendeu do varal e voou.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Oi Rangel, cheguei até você através da minha amiga Ana Bailune.
Seus textos tocam a alma e neles se pode entrar e (talvez) , viver aquilo que ainda não se viveu. Como num filme... Como num livro... Onde a história te faz cativa.
Parabéns por sua rica verve, grande abraço e muito prazer em conhecê-lo.
Lu C.
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