Rangel Alves da
Costa*
Sob as
ordens do rei, eis que se lançou ao mar para atacar as embarcações inimigas.
Não era pirata nem ladrão das águas, mas tinha carta para pilhar qualquer navio
que fosse de bandeira desafeta à coroa real. Mas como levar a empreitada
adiante e vencer potentes canhões, marinheiros astutos e valentes capitães, se
dispunha somente de um pequenino barco a vela? Seriam as sombras de um pequenino
veleiro perante costados gigantes e ferozes.
Lançou-se
ao mar sob uma salva de tiros dos canhões reais. O próprio rei no porto
estivera para presenciar a partida do senhor dos mares. O grande corsário do
rei, conforme anunciado em pompa. O mar agitado logo levou o veleiro às
distâncias e o arremessou nos primeiros rochedos. A maestria do marinheiro
salvou a embarcação e fez aprumar as velas rumo aos horizontes desconhecidos.
Levava cartas náuticas, mapas e bússolas, mas sabia que seriam de pouca
serventia naquele mar de gigantes.
Já era ao
pôr do sol quando olhou ao redor e não avistou nada além de água. Nenhuma
gaivota dava rasante pelo agitado pela ventania, apenas as águas vorazes,
agitadas e que pareciam querer destroçar a embarcação a qualquer instante.
Distante da costa, sem nenhum rei para avistar ou temer, sozinho e entristecido
– e muito mais amedrontado do que imaginara ficar -, baixou as velas e se
deixou levar, mesmo com todos os perigos das águas revoltas. Agora era um barco
ao seu deus-dará.
Sabia que
não demoraria muito e seria lançado às águas, o barco tornado em pedaços e
afundados seus mantimentos. Era exímio nadador, mas também sabia que não seria
fácil encontrar sequer uma pedra que lhe garantisse a salvação ou a sobrevivência
por uns poucos dias. Acaso encontrasse uma ilha, ou acaso fosse encontrado por
outra embarcação, certamente que sobreviveria daquele destino a que fora
lançado. Porém sem jamais colocar os pés naquele porto do rei que esperava
notícias suas. Tinha que informá-lo quantos navios já havia afundado, quantos
barris de ouro já havia pilhado, quantas riquezas já havia encontrado. Triste
sina. Pensou.
Num
repente, antes de tomar uma urgente decisão, recordou das desventuras de Pi e
seu barco à deriva. Avistava o rapazinho indiano tentando domar não só o tigre
Richard Parker como as forças da natureza. Avistava o tigre de bengala
ameaçando o garoto e este colocando a própria vida em perigo para salvar a do
que desejava ser seu algoz. O tigre na segurança do barco e o menino sobre as
águas ao redor. Ai como gostaria de encontrar uma ilha igual aquela que Pi
encontrou. Mas reconhecia-se num mundo e numa situação totalmente diferentes. O
seu tigre seriam tubarões famintos e seu barco apenas um monte de restos boiando.
E a ilha? Alguém já disse que a morte também se assemelha a uma ilha: é
desconhecida por todos os lados. Seria este o seu destino?
Amarrou ao
seu corpo o máximo que pôde de mantimentos e se deitou num canto, desejoso de
adormecer para acordar com a surpresa que o mar imenso lhe reservava. Fechou os
olhos e começou a ouvir a cantiga das águas, a força das ondas batendo no
barco, gritos no sopro do vento, a dança das velas em redemoinho. Com olhos
fechados, aqueles sons como noites de furiosas tempestades. Mas também como
sinos roucos dobrando uma despedida qualquer. Seria a dele? E num repente já
estava dormindo. E dormia tão profundamente que os olhos do mar certamente
imaginavam estar deitado numa confortável cama. Um corpo estendido sobre panos
confortáveis e uma janela aberta quando despertasse. Ilusões.
Assim,
conflagrado pelas desditas da sina, adormeceu e sonhou. Quanto mais tentava
fugir mais Moby Dick surgia com dentes imensos à beira da proa. Aportava numa
ilha e era recebido por canibais famintos. Descansava numa pedra grande e
começava o ouvir o canto da sereia se aproximando cada vez mais. Imaginou ser
Ulisses, imaginou ser o Capitão Jack Sparrow, imaginou ser o destemido
Barba-Negra e até o famigerado Barbarossa. Viu-se colocado num baú e lançado ao
mar. Sacolejado pelos seres tenebrosos das águas, já estava para ser destroçado
quando acordou num pulo, suado, assustado. Olhou para cima e avistou apenas o
seu mar de madeira. Um mar no telhado da casa.
Costumava
deitar e esperar o sono chegar enquanto mirava o telhado e lá em cima, entre
caibros, ripas e telhas, um mar imenso. Aportava numa das frestas de raio de
lua e viajava pelos continentes. Mas nunca havia adormecido e sonhado assim.
Pela primeira vez na vida foi corsário de barco à vela em mar tenebroso. Depois
levantou e foi até a janela. Ao abri-la avistou uma lua imensa e um navio
pirata roubando estrelas.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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