SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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sábado, 24 de outubro de 2015

CORSÁRIO TRISTE EM MAR SOMBRIO


Rangel Alves da Costa*


Sob as ordens do rei, eis que se lançou ao mar para atacar as embarcações inimigas. Não era pirata nem ladrão das águas, mas tinha carta para pilhar qualquer navio que fosse de bandeira desafeta à coroa real. Mas como levar a empreitada adiante e vencer potentes canhões, marinheiros astutos e valentes capitães, se dispunha somente de um pequenino barco a vela? Seriam as sombras de um pequenino veleiro perante costados gigantes e ferozes.
Lançou-se ao mar sob uma salva de tiros dos canhões reais. O próprio rei no porto estivera para presenciar a partida do senhor dos mares. O grande corsário do rei, conforme anunciado em pompa. O mar agitado logo levou o veleiro às distâncias e o arremessou nos primeiros rochedos. A maestria do marinheiro salvou a embarcação e fez aprumar as velas rumo aos horizontes desconhecidos. Levava cartas náuticas, mapas e bússolas, mas sabia que seriam de pouca serventia naquele mar de gigantes.
Já era ao pôr do sol quando olhou ao redor e não avistou nada além de água. Nenhuma gaivota dava rasante pelo agitado pela ventania, apenas as águas vorazes, agitadas e que pareciam querer destroçar a embarcação a qualquer instante. Distante da costa, sem nenhum rei para avistar ou temer, sozinho e entristecido – e muito mais amedrontado do que imaginara ficar -, baixou as velas e se deixou levar, mesmo com todos os perigos das águas revoltas. Agora era um barco ao seu deus-dará.
Sabia que não demoraria muito e seria lançado às águas, o barco tornado em pedaços e afundados seus mantimentos. Era exímio nadador, mas também sabia que não seria fácil encontrar sequer uma pedra que lhe garantisse a salvação ou a sobrevivência por uns poucos dias. Acaso encontrasse uma ilha, ou acaso fosse encontrado por outra embarcação, certamente que sobreviveria daquele destino a que fora lançado. Porém sem jamais colocar os pés naquele porto do rei que esperava notícias suas. Tinha que informá-lo quantos navios já havia afundado, quantos barris de ouro já havia pilhado, quantas riquezas já havia encontrado. Triste sina. Pensou.
Num repente, antes de tomar uma urgente decisão, recordou das desventuras de Pi e seu barco à deriva. Avistava o rapazinho indiano tentando domar não só o tigre Richard Parker como as forças da natureza. Avistava o tigre de bengala ameaçando o garoto e este colocando a própria vida em perigo para salvar a do que desejava ser seu algoz. O tigre na segurança do barco e o menino sobre as águas ao redor. Ai como gostaria de encontrar uma ilha igual aquela que Pi encontrou. Mas reconhecia-se num mundo e numa situação totalmente diferentes. O seu tigre seriam tubarões famintos e seu barco apenas um monte de restos boiando. E a ilha? Alguém já disse que a morte também se assemelha a uma ilha: é desconhecida por todos os lados. Seria este o seu destino?
Amarrou ao seu corpo o máximo que pôde de mantimentos e se deitou num canto, desejoso de adormecer para acordar com a surpresa que o mar imenso lhe reservava. Fechou os olhos e começou a ouvir a cantiga das águas, a força das ondas batendo no barco, gritos no sopro do vento, a dança das velas em redemoinho. Com olhos fechados, aqueles sons como noites de furiosas tempestades. Mas também como sinos roucos dobrando uma despedida qualquer. Seria a dele? E num repente já estava dormindo. E dormia tão profundamente que os olhos do mar certamente imaginavam estar deitado numa confortável cama. Um corpo estendido sobre panos confortáveis e uma janela aberta quando despertasse. Ilusões.
Assim, conflagrado pelas desditas da sina, adormeceu e sonhou. Quanto mais tentava fugir mais Moby Dick surgia com dentes imensos à beira da proa. Aportava numa ilha e era recebido por canibais famintos. Descansava numa pedra grande e começava o ouvir o canto da sereia se aproximando cada vez mais. Imaginou ser Ulisses, imaginou ser o Capitão Jack Sparrow, imaginou ser o destemido Barba-Negra e até o famigerado Barbarossa. Viu-se colocado num baú e lançado ao mar. Sacolejado pelos seres tenebrosos das águas, já estava para ser destroçado quando acordou num pulo, suado, assustado. Olhou para cima e avistou apenas o seu mar de madeira. Um mar no telhado da casa.
Costumava deitar e esperar o sono chegar enquanto mirava o telhado e lá em cima, entre caibros, ripas e telhas, um mar imenso. Aportava numa das frestas de raio de lua e viajava pelos continentes. Mas nunca havia adormecido e sonhado assim. Pela primeira vez na vida foi corsário de barco à vela em mar tenebroso. Depois levantou e foi até a janela. Ao abri-la avistou uma lua imensa e um navio pirata roubando estrelas.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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