Rangel Alves da
Costa*
Casa que
se preze guarda em cima de qualquer móvel o retrato da família. Quando não cabe
tudo num só porta-retratos, as fotografias vão sendo espalhadas em molduras
próprias, numa o casal, noutra os filhos ou com outras arrumações. Contudo,
comumente as paredes servem como repositório de gerações. Então as molduras vão
se enfileirando como em varais de memórias e saudades.
Os
retratos de família, contudo, não servem como meros enfeites de móveis ou de
paredes. As pessoas que estão retratadas já preexistem nos álbuns do coração. O
que ali se expõe é apenas uma cópia do que permanece tão vivo nos sentimentos.
E com letras douradas alguém escreve: meu avô, minha avó, minha mãe, meu pai,
meu irmão... E talvez ainda: Por que eterna é a vida do amor. E imortal é o
sentimento de quem ama os seus...
O tempo
vai passando e aqueles rostos com a jovialidade de um dia, simplesmente vão
deixando aos espelhos que os recobre a dolorosa tarefa de mostrar o
envelhecimento nos tons amarelecidos que vão surgindo. As cores turvas e os
embaçamentos são as rugas que vão se formando lá dentro, ainda que a feição
seja a mesma na fotografia. Mas o amor sentido, a saudade que permanece, nada
disso consegue envelhecer naquele sentimento que faz do passado um reencontro
com os seus.
Mas
inegável que as molduras antigas, envernizadas, parecendo trabalhadas à mão,
guardam uma indescritível e pesarosa solidão. O ontem ali, na quietude
silenciosa dos dias, se falasse, se avistasse o hoje, e como espelho refletisse
o instante, certamente romperia a sofrida mudez para dizer tudo aquilo que a
despedida impediu de expressar. E assim porque todo adeus leva consigo
palavras, gestos, ações e atitudes, que a existência terrena não deu tempo
suficiente de concretizar.
Não são
raros os familiares que após o adeus final continuam se lamentando pelo que
deixarem de expressar quando na presença dos seus. Como aquela canção, repetem
que eu deveria de ter amado mais, conversado mais, vivenciado mais, acarinhado
mais. Eu deveria ter demonstrado todo o meu amor, todo o meu afeto. Assim
repetem porque somente depois reconhecem quanto tempo foi perdido imaginando
que a vida é uma eternidade.
Ante as
fotografias, de repente a pessoa imagina como aquela casa continua cheia de
gente. Os avôs, os pais, os irmãos, todos ali na continuidade dos dias, na
passagem do tempo. Talvez muitos anos já tenham se passado desde a despedida ou
a distância tenha mantido alguns afastados, mas todos ali presentes pelas
salas, varandas e quartos. E os olhos que passeiam pelas paredes fazem do
reencontro singelas palavras: quanta saudade, quanto desejo de tê-lo aqui ao
meu lado para um abraço apertado! E então se pergunta: Por que somos ainda e
não somos mais?
Outras
vezes, os retratos da parede são da própria pessoa em idades diferentes.
Naquele álbum estendido a criança de chupeta, o menino de cabelo encaracolado,
o jovem penteado a brilhantina, o adulto fingindo uma feição mais austera. E
ainda assim quanta saudade. E saudade porque aquelas feições sempre despertam
nostalgia, uma vontade danada de reviver aqueles idos. Mas também, quando
comparado ao instante presente, sempre uma angústia pelas marcas refletidas no
espelho.
Contam que
um dia alguém partiu sem destino e deixou em casa apenas um retrato emoldurado
na parede. Desde que o irmão viajou, assim que sentia saudade sua única irmã corria
até o quarto para afastar a tristeza diante daquela feição tão amada. Mas a
mocinha tinha muitos afazeres e de vez quando passava dias sem avistar aquele
retrato. Apenas pensamentos passageiros a colocava diante do irmão distante.
Mas um dia
que a saudade bateu mais forte, a mocinha correu até lá e ao afastar a cortina
para olhar o retrato sentiu algo diferente. Não sabia explicar porque, mas
tinha certeza que o sorriso estava estranho e o olhar parecia um pouco mais
distante. Pensou que talvez a poeira estivesse turvando o espelho e modificando
aquele jeito de ser no retrato. Limpou tudo com cuidado e o colocou num local
mais visível.
Ela viajou
com os pais e por quase um ano ficou sem ver o retrato. Assim que retornou e
abriu a porta do quarto logo sentiu a falta de qualquer sorriso dentro da
moldura. Ficou pensativa, imaginando o que poderia estar acontecendo. No dia
seguinte, ao retornar ao local se tomou de espanto ao perceber uma tristeza
imensa na fotografia. No outro dia, algo ainda mais estarrecedor: a imagem de
seu irmão estava sumindo, simplesmente desaparecendo.
Não teve mais dúvidas do que poderia ter
acontecido. E então começou a chorar. Percebeu que a fotografia do irmão estava
substituindo a presença dele e que se a imagem estava sumindo era porque ele
também estava partindo. A cada vez que retornava mais em névoa encontrava
naquela face. Um rosto sumindo, a feição desaparecendo de vez.
Um dia o
rosto sumiu da fotografia. Então, sem poder fazer outra coisa, foi até a
moldura e colocou flores ao lado. Depois acendeu uma vela e continuou a chorar.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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