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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 26 de outubro de 2015

RETRATOS DE FAMÍLIA, MOLDURAS DE SAUDADE


Rangel Alves da Costa*


Casa que se preze guarda em cima de qualquer móvel o retrato da família. Quando não cabe tudo num só porta-retratos, as fotografias vão sendo espalhadas em molduras próprias, numa o casal, noutra os filhos ou com outras arrumações. Contudo, comumente as paredes servem como repositório de gerações. Então as molduras vão se enfileirando como em varais de memórias e saudades.
Os retratos de família, contudo, não servem como meros enfeites de móveis ou de paredes. As pessoas que estão retratadas já preexistem nos álbuns do coração. O que ali se expõe é apenas uma cópia do que permanece tão vivo nos sentimentos. E com letras douradas alguém escreve: meu avô, minha avó, minha mãe, meu pai, meu irmão... E talvez ainda: Por que eterna é a vida do amor. E imortal é o sentimento de quem ama os seus...
O tempo vai passando e aqueles rostos com a jovialidade de um dia, simplesmente vão deixando aos espelhos que os recobre a dolorosa tarefa de mostrar o envelhecimento nos tons amarelecidos que vão surgindo. As cores turvas e os embaçamentos são as rugas que vão se formando lá dentro, ainda que a feição seja a mesma na fotografia. Mas o amor sentido, a saudade que permanece, nada disso consegue envelhecer naquele sentimento que faz do passado um reencontro com os seus.
Mas inegável que as molduras antigas, envernizadas, parecendo trabalhadas à mão, guardam uma indescritível e pesarosa solidão. O ontem ali, na quietude silenciosa dos dias, se falasse, se avistasse o hoje, e como espelho refletisse o instante, certamente romperia a sofrida mudez para dizer tudo aquilo que a despedida impediu de expressar. E assim porque todo adeus leva consigo palavras, gestos, ações e atitudes, que a existência terrena não deu tempo suficiente de concretizar.
Não são raros os familiares que após o adeus final continuam se lamentando pelo que deixarem de expressar quando na presença dos seus. Como aquela canção, repetem que eu deveria de ter amado mais, conversado mais, vivenciado mais, acarinhado mais. Eu deveria ter demonstrado todo o meu amor, todo o meu afeto. Assim repetem porque somente depois reconhecem quanto tempo foi perdido imaginando que a vida é uma eternidade.
Ante as fotografias, de repente a pessoa imagina como aquela casa continua cheia de gente. Os avôs, os pais, os irmãos, todos ali na continuidade dos dias, na passagem do tempo. Talvez muitos anos já tenham se passado desde a despedida ou a distância tenha mantido alguns afastados, mas todos ali presentes pelas salas, varandas e quartos. E os olhos que passeiam pelas paredes fazem do reencontro singelas palavras: quanta saudade, quanto desejo de tê-lo aqui ao meu lado para um abraço apertado! E então se pergunta: Por que somos ainda e não somos mais?
Outras vezes, os retratos da parede são da própria pessoa em idades diferentes. Naquele álbum estendido a criança de chupeta, o menino de cabelo encaracolado, o jovem penteado a brilhantina, o adulto fingindo uma feição mais austera. E ainda assim quanta saudade. E saudade porque aquelas feições sempre despertam nostalgia, uma vontade danada de reviver aqueles idos. Mas também, quando comparado ao instante presente, sempre uma angústia pelas marcas refletidas no espelho.
Contam que um dia alguém partiu sem destino e deixou em casa apenas um retrato emoldurado na parede. Desde que o irmão viajou, assim que sentia saudade sua única irmã corria até o quarto para afastar a tristeza diante daquela feição tão amada. Mas a mocinha tinha muitos afazeres e de vez quando passava dias sem avistar aquele retrato. Apenas pensamentos passageiros a colocava diante do irmão distante.
Mas um dia que a saudade bateu mais forte, a mocinha correu até lá e ao afastar a cortina para olhar o retrato sentiu algo diferente. Não sabia explicar porque, mas tinha certeza que o sorriso estava estranho e o olhar parecia um pouco mais distante. Pensou que talvez a poeira estivesse turvando o espelho e modificando aquele jeito de ser no retrato. Limpou tudo com cuidado e o colocou num local mais visível.
Ela viajou com os pais e por quase um ano ficou sem ver o retrato. Assim que retornou e abriu a porta do quarto logo sentiu a falta de qualquer sorriso dentro da moldura. Ficou pensativa, imaginando o que poderia estar acontecendo. No dia seguinte, ao retornar ao local se tomou de espanto ao perceber uma tristeza imensa na fotografia. No outro dia, algo ainda mais estarrecedor: a imagem de seu irmão estava sumindo, simplesmente desaparecendo.
 Não teve mais dúvidas do que poderia ter acontecido. E então começou a chorar. Percebeu que a fotografia do irmão estava substituindo a presença dele e que se a imagem estava sumindo era porque ele também estava partindo. A cada vez que retornava mais em névoa encontrava naquela face. Um rosto sumindo, a feição desaparecendo de vez.
Um dia o rosto sumiu da fotografia. Então, sem poder fazer outra coisa, foi até a moldura e colocou flores ao lado. Depois acendeu uma vela e continuou a chorar.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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